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SABEDORIA
SABEDORIA

 

 

Sabedoria

Com o livro da Sabedoria, encon­tramo-nos no fim do AT, num mo­mento fun­damental do diálogo entre o judaísmo e a cultura grega. Neste sentido, ele é um bom predecessor do NT. Por isso, a sua língua é o grego e pertence aos chamados livros Deuterocanónicos, por se encontrar apenas na Bíblia grega e, conse­quentemente, não entrar nem no Cânon judaico (da Bíblia hebraica) nem, mais tarde, no Cânon das igrejas protestantes.


AUTOR E DATA

Atribuído a Salomão por algumas versões e manuscritos antigos, o livro da Sabedoria é certamente da responsabilidade de um autor anónimo bem distante de Salomão no tempo, que não poderá situar-se para além do ano 50 a.C. (entre 150 e 50 a.C.). Isso manifesta-se nos indícios de carác­ter literário e histórico. A atribuição do livro a Salomão, nos cap 6-9, e só implicitamente, deve-se ao facto de a tradição bíblico-judaica situar este rei na origem do género literário sapiencial, o que faz dele o Sábio por excelência (7,1-21; 8,14-16; 9; ver 1 Rs 3,5-9; 5,9-14; 10,23-61). Muito provavel­­mente, o autor foi um judeu de Alexandria, no Egipto – onde residia uma forte comu­nidade judaica – que utilizou a pseudonímia. Como fruto dessa comuni­dade, o livro está marcado culturalmente por uma forte influência helenista.

O autor conhece, por um lado, a História do seu povo e a fé num Deus sem­pre presente e pronto a intervir nela; e por outro, sente a forte atracção que as principais filosofias helenísticas e as diversas religiões exercem na vida dos seus irmãos de raça e de fé. Por isso, tenta estabelecer o diálogo entre fé e cultura grega (6-8), de modo a sublinhar que a sabedoria que brota da fé e conduz a vida dos israelitas é superior à que inspira o modo de viver dos habitantes de Alexandria. Com este livro, o autor dirige-se, pois, a dois destinatários diferentes: aos judeus de Alexandria, directa ou indirectamente perseguidos pelo paga­nismo do ambiente; e aos próprios pagãos, sobretudo aos intelectuais helenis­tas, mais abertos à cultura hebraica, intentando, porventura, convertê-los ao Deus verdadeiro.


ESTRUTURA E CONTEÚDO

Esta proposta de vida, assente na revela­ção de Deus, manifestada na História e no mundo criado, é desenvolvida em três partes:

I. A Sabedoria e o destino do homem (1,1-5,23): descreve-se a sorte diversa dos justos e dos ímpios, à luz da fé; sendo a justiça imortal (1,16), Deus reserva a imortalidade aos justos.
II. Elogio da Sabedoria (6,1-9,18): origem, natureza, propriedades e dons que acompanham a sabedoria (7,22-8,1), como personificação de Deus (ver Pr 8; Sir 24); elogio da sabedoria, elevando-a acima dos valores mais apre­ciados neste mundo.
III. A Sabedoria na História de Israel (10,1-19,22): descreve-se a pre­sença e a actividade da sabedoria em toda a História do povo de Israel com espe­­cial incidência sobre o Êxodo (11,1-19,17), em forma de midrache e de con­tras­tes, que caracterizam o estilo desta terceira parte (11,4-15,19; 16,1-4.5-14.15-29; 17,1-18,4; 18,5-25; 19,1-21). Mas o autor também mani­festa conhe­cimentos profundos de outros livros: Génesis, Provérbios, Ben Sira e Isaías. Merece um relevo especial a brilhante polémica contra a idolatria.

O estilo geral da obra inclui recursos estilísticos hebraicos (paralelismo, parataxe, comentário midráchico, alusões a motivos do AT) e gregos (abun­dância de sinónimos, adjectivação rebuscada, aliterações, rimas e jogos de palavras). Tudo isto faz do livro da Sabedoria um modelo do grego da Bíblia dos Setenta.


TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ

Muitos judeus seriam tentados a se­guir o cami­nho dos “ímpios” e a renegar a sua fé, tanto pela perseguição ou pelo ridí­culo a que eram sujeitos por causa das práticas dessa fé, como pela vida moral fácil que os alexandrinos levavam, em contraste com as exigên­cias apontadas pela Lei (2,1-20). Mais que uma categoria ou classe de pes­soas, os “ímpios” – que são o contraponto dos “justos” ao longo de todo o livro – per­sonificam um estilo de vida oposto e hostil, por vezes, ao que deveria constituir o do judeu crente. Esta temática pode caracterizar-se pela ideia de justiça, nos seus três sentidos bíbli­cos: como vir­tude da equidade, isto é, dar a cada um o que lhe per­tence; como cum­pri­mento perfeito da vontade de Deus; e, final­mente, como força ou acção de Deus, que nos livra de toda a espécie de mal.

O autor resolve o problema da felicidade dos justos e infelicidade dos ímpios pela retribuição ultra­ter­rena para os justos. Face a um am­biente reli­gioso, filosófico e cultural, que apresentava um estilo de vida material e formal­mente atraente, era imperioso dar razões fortes da fé, mesmo em ter­mos racionais e vitais, para que ela não aparecesse inferio­rizada como pro­posta ou estilo de vida. Por isso o autor mostra excep­cio­­nais conhecimentos de toda a Bí­blia e da vida cultural helenística.

Uma segunda ideia teológica fun­damental deste livro é a personi­fi­ca­ção da Sabedoria divina. Enquan­to, para os gregos, a sabedoria era um meio para chegar ao conhecimento e contemplação divina, para o autor, ela é uma proposta de vida, um al­guém que está presente em toda a vida e que preside à vida toda; que fala, estimula e argumenta. A sabedoria é assim porque é o reflexo da vontade e dos desígnios de Deus (9,13.17); porque partilha da própria vida de Deus e está associada a todas as suas obras (8,3-4) e tem a ver com o espírito de Deus (1,6; 7,7.22-23; 9,17); é ela que torna a religião judaica muito superior às religiões idólatras (cap. 13-15). Numa palavra, a sabedoria é um outro modo da revelação de Deus; isto é, o próprio Deus actua na História de Israel (cap. 11-12; 16-19) e no mundo criado por meio da sua sabedoria. Ela prefigura o amor e a sabedoria de Deus que culmina em Jesus Cristo, também chamado “Sabedoria de Deus” (ver 1 Cor 1,24.30).

 

 

1.Amai a justiça, vós que governais a terra, tende para com o Senhor sentimentos perfeitos, e procurai-o na simplicidade do coração,

2.porque ele é encontrado pelos que o não tentam, e se revela aos que não lhe recusam sua confiança;

3.com efeito, os pensamentos tortuosos afastam de Deus, e o seu poder, posto à prova, triunfa dos insensatos.

4.A Sabedoria não entrará na alma perversa, nem habitará no corpo sujeito ao pecado;

5.o Espírito Santo educador (das almas) fugirá da perfídia, afastar-se-á dos pensamentos insensatos, e a iniqüidade que sobrevém o repelirá.

6.Sim, a Sabedoria é um espírito que ama os homens, mas não deixará sem castigo o blasfemador pelo crime de seus lábios, porque Deus lhe sonda os rins, penetra até o fundo de seu coração, e ouve as suas palavras.

7.Com efeito, o Espírito do Senhor enche o universo, e ele, que tem unidas todas as coisas, ouve toda voz.

8.Aquele que profere uma linguagem iníqua, não pode fugir dele, e a Justiça vingadora não o deixará escapar;

9.pois os próprios desígnios do ímpio serão cuidadosamente examinados; o som de suas palavras chegará até o Senhor, que lhe imporá o castigo pelos seus pecados.

10.É, com efeito, um ouvido cioso, que tudo ouve: nem a menor murmuração lhe passa despercebida.

11.Acautelai-vos, pois, de queixar-vos inutilmente, evitai que vossa língua se entregue à crítica, porque até mesmo uma palavra secreta não ficará sem castigo, e a boca que acusa com injustiça arrasta a alma à morte.

12.Não procureis a morte por uma vida desregrada, não sejais o próprio artífice de vossa perda.

13.Deus não é o autor da morte, a perdição dos vivos não lhe dá alegria alguma.

14.Ele criou tudo para a existência, e as criaturas do mundo devem cooperar para a salvação. Nelas nenhum princípio é funesto, e a morte não é a rainha da terra,

15.porque a justiça é imortal.

16.Mas, (a morte), os ímpios a chamam com o gesto e a voz. Crendo-a amiga, consomem-se de desejos, e fazem aliança com ela; de fato, eles merecem ser sua presa.

 

 

1.Dizem, com efeito, nos seus falsos raciocínios: Curta é a nossa vida, e cheia de tristezas; para a morte não há remédio algum; não há notícia de ninguém que tenha voltado da região dos mortos.

2.Um belo dia nascemos e, depois disso, seremos como se jamais tivéssemos sido! É fumaça a respiração de nossos narizes, e nosso pensamento, uma centelha que salta do bater de nosso coração!

3.Extinta ela, nosso corpo se tornará pó, e o nosso espírito se dissipará como um vapor inconsistente!

4.Com o tempo nosso nome cairá no esquecimento, e ninguém se lembrará de nossas obras. Nossa vida passará como os traços de uma nuvem, desvanecer-se-á como uma névoa que os raios do sol expulsam, e que seu calor dissipa.

5.A passagem de uma sombra: eis a nossa vida, e nenhum reinício é possível uma vez chegado o fim, porque o selo lhe é aposto e ninguém volta.

6.Vinde, portanto! Aproveitemo-nos das boas coisas que existem! Vivamente gozemos das criaturas durante nossa juventude!

7.Inebriemo-nos de vinhos preciosos e de perfumes, e não deixemos passar a flor da primavera!

8.Coroemo-nos de botões de rosas antes que eles murchem!

9.Ninguém de nós falte à nossa orgia; em toda parte deixemos sinais de nossa alegria, porque esta é a nossa parte, esta a nossa sorte!

10.Tiranizemos o justo na sua pobreza, não poupemos a viúva, e não tenhamos consideração com os cabelos brancos do ancião!

11.Que a nossa força seja o critério do direito, porque o fraco, em verdade, não serve para nada.

12.Cerquemos o justo, porque ele nos incomoda; é contrário às nossas ações; ele nos censura por violar a lei e nos acusa de contrariar a nossa educação.

13.Ele se gaba de conhecer a Deus, e se chama a si mesmo filho do Senhor!

14.Sua existência é uma censura às nossas idéias; basta sua vista para nos importunar.

15.Sua vida, com efeito, não se parece com as outras, e os seus caminhos são muito diferentes.

16.Ele nos tem por uma moeda de mau quilate, e afasta-se de nosso caminhos como de manchas. Julga feliz a morte do justo, e gloria-se de ter Deus por pai.

17.Vejamos, pois, se suas palavras são verdadeiras, e experimentemos o que acontecerá quando da sua morte,

18.porque, se o justo é filho de Deus, Deus o defenderá, e o tirará das mãos dos seus adversários.

19.Provemo-lo por ultrajes e torturas, a fim de conhecer a sua doçura e estarmos cientes de sua paciência.

20.Condenemo-lo a uma morte infame. Porque, conforme ele, Deus deve intervir.

21.Eis o o que pensam, mas enganam-se, sua malícia os cega:

22.eles desconhecem os segredos de Deus, não esperam que a santidade seja recompensada, e não acreditam na glorificação das almas puras.

23.Ora, Deus criou o homem para a imortalidade, e o fez à imagem de sua própria natureza.

24.É por inveja do demônio que a morte entrou no mundo, e os que pertencem ao demônio prová-la-ão.

 

1.Mas as almas dos justos estão na mão de Deus, e nenhum tormento os tocará.

2.Aparentemente estão mortos aos olhos dos insensatos: seu desenlace é julgado como uma desgraça.

3.E sua morte como uma destruição, quando na verdade estão na paz!

4.Se aos olhos dos homens suportaram uma correção, a esperança deles era portadora de imortalidade,

5.e por terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, porque Deus, que os provou, achou-os dignos de si.

6.Ele os provou como ouro na fornalha, e os acolheu como holocausto.

7.No dia de sua visita, eles se reanimarão, e correrão como centelhas na palha.

8.Eles julgarão as nações e dominarão os povos, e o Senhor reinará sobre eles para sempre.

9.Os que põem sua confiança nele compreenderão a verdade, e os que são fiéis habitarão com ele no amor: porque seus eleitos são dignos de favor e misericórdia.

10.Mas os ímpios terão o castigo que merecem seus pensamentos, uma vez que desprezaram o justo e se separaram do Senhor: e desgraçado é aquele que rejeita a sabedoria e a disciplina!

11.A esperança deles é vã, seus sofrimentos sem proveito, e as obras deles inúteis.

12.Suas mulheres são insensatas e seus filhos malvados; a raça deles é maldita.

13.Feliz a mulher estéril, mas pura de toda a mancha, a que não manchou seu tálamo: ela carregará seu fruto no dia da retribuição das almas.

14.Feliz o eunuco cuja mão não cometeu o mal, que não concebeu iniqüidade contra o Senhor, porque ele receberá pela sua fidelidade uma graça de escol, e no templo do Senhor uma parte muito honrosa,

15.porque é esplêndido o fruto de bons trabalhos, e a raiz da sabedoria é sempre fértil.

16.Quanto aos filhos dos adúlteros, a nada chegarão, e a raça que descende do pecado será aniqüilada.

17.Ainda que vivam muito tempo, serão tidos por nada e, finalmente, sua velhice será sem honra.

18.Caso morram cedo, não terão esperança alguma, e no dia do julgamento não encontrarão nenhuma piedade:

19.porque é lamentável o fim de uma raça injusta.

 

1.Mais vale uma vida sem filhos, mas rica de virtudes: sua memória será imortal, porque será conhecida de Deus e dos homens.

2.Quando está presente, imitam-na; quando passada, desejam-na; ela leva na glória uma coroa eterna, por ter triunfado sem mancha nos combates.

3.Mas para nada servirá, ainda que numerosa, a raça dos ímpios; procedendo de renovos bastardos, não estenderá raízes profundas, não se estabelecerá numa base sólida.

4.Ainda que por algum tempo estenda seus ramos, estando instavelmente assentada, será abalada pelo vento e, pela violência da tempestade, será desarraigada.

5.Os galhos serão quebrados antes do desenvolvimento, o fruto deles será inútil, verde demais para ser comido, e impróprio para qualquer uso,

6.porque os filhos nascidos de uniões ilícitas serão no dia do juízo testemunhas a deporem contra seus pais.

7.Quanto ao justo, mesmo que morra antes da idade, gozará de repouso.

8.A honra da velhice não provém de uma longa vida, e não se mede pelo número dos anos.

9.Mas é a sabedoria que faz as vezes dos cabelos brancos; é uma vida pura que se tem em conta de velhice.

10.Ele agradou a Deus e foi por ele amado, assim (Deus) o transferiu do meio dos pecadores onde vivia.

11.Foi arrebatado para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma:

12.porque a fascinação do vício atira um véu sobre a beleza moral, e o movimento das paixões mina uma alma ingênua.

13.Tendo chegado rapidamente ao termo, percorreu uma longa carreira.

14.Sua alma era agradável ao Senhor, e é por isso que ele o retirou depressa do meio da perversidade. Os povos que vêem esse modo de agir não o compreendem, e não refletem nisto:

15.que o favor de Deus e sua misericórdia são para seus eleitos, e sua assistência está no meio de seus fiéis.

16.O justo, ao morrer, condena os ímpios que sobrevivem, e a juventude, atingindo tão depressa a perfeição, confunde a longa velhice do pecador.

17.Eles verão o fim do sábio, e não compreenderão os desígnios do Senhor a seu respeito, nem por que ele o pôs em segurança.

18.Eles verão e mostrarão desprezo, mas o Senhor zombará deles.

19.Depois disso serão cadáveres sem honra, desterrados entre os mortos, numa eterna ignomínia, porque ele os ferirá, e os precipitará sem voz, abatê-los-á nas suas bases e os mergulhará na última desolação. Eles serão entregues à dor, e a memória deles perecerá.

20.Comparecerão aterrorizados com a lembrança de seus pecados, e suas iniqüidades se levantarão contra eles para os confundir.

 

1.Então, com grande confiança, o justo se levantará em face dos que o perseguiram e zombaram dos seus males aqui embaixo.

2.Diante de sua vista serão presos de grande temor e tomados de assombro ao vê-lo salvo contra sua expectativa;

3.tocados de arrependimento, dirão entre si, e, gemendo na angústia de sua alma, dirão:

4.Ei-lo, aquele de quem outrora escarnecemos, e a quem loucamente cobrimos de insultos! Considerávamos sua vida como uma loucura, e sua morte como uma vergonha.

5.Como, pois, é ele do número dos filhos de Deus, e como está seu lugar entre os santos?

6.Portanto, nós nos desgarramos para longe da verdade: a luz da justiça não brilhou para nós e o sol não se levantou sobre nós!

7.Nós nos manchamos nas sendas da iniqüidade e da perdição, erramos pelos desertos sem caminhos e não conhecemos o caminho do Senhor!

8.O que ganhamos com nosso orgulho, e que nos trouxe a riqueza unida à arrogância?

9.Tudo isso desapareceu como sombra, como notícia que passa;

10.como navio que fende a água agitada, sem que se possa reencontrar o rasto de seu itinerário, nem a esteira de sua quilha nas ondas.

11.Como a ave que, atravessando o ar em seu vôo, não deixa após si o traço de sua passagem, mas, ferindo o ar com suas penas, fende-o com a impetuosa força do bater de suas asas, atravessa-o e logo nem se nota indício de sua passagem;

12.como quando uma flecha, que é lançada ao alvo, o ar que ela cortou volta imediatamente à sua posição de modo que não se pode distinguir sua trajetória,

13.assim, também nós, apenas nascidos, cessamos de ser, e não podemos mostrar traço algum de virtude: é no mal que nossa vida se consumiu!

14.Assim a esperança do ímpio é como a poeira levada pelo vento, e como uma leve espuma espalhada pela tempestade; ela se dissipa como o fumo ao vento, e passa como a lembrança do hóspede de um dia.

15.Mas os justos viverão eternamente; sua recompensa está no Senhor, e o Altíssimo cuidará deles.

16.Por isso receberão a régia coroa de glória, e o diadema da beleza da mão do Senhor, porque os cobrirá com sua direita, e os protegerá com seu braço.

17.Por armadura tomará seu zelo cioso, e armará as criaturas para se vingar de seus inimigos.

18.Tomará por couraça a justiça, e por capacete a integridade no julgamento.

19.Ele se cobrirá com a santidade, como com um impenetrável escudo,

20.afiará o gume de sua ira para lhe servir de espada, e o mundo se reunirá a ele na luta contra os insensatos.

21.Os raios partirão como flechas bem dirigidas, e, como de um arco bem distendido, voarão das nuvens para o alvo;

22.uma balista fará cair uma pesada saraiva de ira; a água do mar se levantará em turbilhão contra eles e os rios os arrastarão impetuosamente.

23.O sopro do Todo-poderoso se insurgirá contra eles e os dispersará como um furacão; a iniqüidade fará de toda a terra um deserto, e a malícia derribará os tronos dos poderosos!

1.Ouvi, pois, ó reis, e entendei; aprendei vós que governais o universo!

2.Prestai ouvidos, vós que reinais sobre as nações e vos gloriais do número de vossos povos!

3.Porque é do Senhor que recebestes o poder, e é do Altíssimo que tendes o poderio; é ele que examinará vossas obras e sondará vossos pensamentos!

4.Se, ministros do reino, vós não julgastes eqüitativamente, nem observastes a lei, nem andastes segundo a vontade de Deus,

5.ele se apresentará a vós, terrível, inesperado, porque aqueles que dominam serão rigorosamente julgados.

6.Ao menor, com efeito, a compaixão atrai o perdão, mas os poderosos serão examinados sem piedade.

7.O Senhor de todos não fará exceção para ninguém, e não se deixará impor pela grandeza, porque, pequenos ou grandes, é ele que a todos criou, e de todos cuida igualmente;

8.mas para os poderosos o julgamento será severo.

9.É a vós, pois, ó príncipes, que me dirijo, para que aprendais a Sabedoria e não resvaleis,

10.porque aqueles que santamente observarem as santas leis serão santificados, e os que as tiverem estudado poderão justificar-se.

11.Anelai, pois, pelas minhas palavras, reclamai-as ardentemente e sereis instruídos.

12.Resplandescente é a Sabedoria, e sua beleza é inalterável: os que a amam, descobrem-na facilmente.

13.Os que a procuram encontram-na. Ela antecipa-se aos que a desejam.

14.Quem, para possuí-la, levanta-se de madrugada, não terá trabalho, porque a encontrará sentada à sua porta.

15.Fazê-la objeto de seus pensamentos é a prudência perfeita, e quem por ela vigia, em breve não terá mais cuidado.

16.Ela mesma vai à procura dos que são dignos dela; ela lhes aparece nos caminhos cheia de benevolência, e vai ao encontro deles em todos os seus pensamentos,

17.porque, verdadeiramente, desde o começo, seu desejo é instruir, e desejar instruir-se é amá-la.

18.Mas amá-la é obedecer às suas leis, e obedecer às suas leis é a garantia da imortalidade.

19.Ora, a imortalidade faz habitar junto de Deus;

20.assim o desejo da Sabedoria conduz ao Reino!

21.Se, pois, cetros e tronos vos agradam, ó vós que governais os povos, honrai a Sabedoria, e reinareis eternamente.

22.Mas eu vou dizer o que é a Sabedoria e como ela nasceu. Não vos esconderei os seus mistérios; mas investigá-la-ei até sua mais remota origem; porei à luz o que dela pode ser conhecido, e não me afastarei da verdade.

23.Não imitarei aquele a quem a inveja consome, porque esse tal não tem nada a ver com a Sabedoria:

24.é no grande número de sábios que se encontra a salvação do mundo, e um rei sensato faz a prosperidade de seu povo.

25.Deixai-vos, pois, instruir por minhas palavras, e nelas encontrareis grande proveito.

1.Eu mesmo não passo de um mortal como todos os outros, e descendo do primeiro homem formado da terra. Meu corpo foi formado no seio de minha mãe,

2.onde, durante dez meses, no sangue tomou consistência, da semente viril e do prazer ajuntado à união (conjugal).

3.Eu também, desde meu nascimento, respirei o ar comum; eu caí, da mesma maneira que todos, sobre a mesma terra, e, como todos, nos mesmos prantos soltei o primeiro grito.

4.Envolto em faixas fui criado no meio de assíduos cuidados;

5.porque nenhum rei teve outro início na existência;

6.para todos a entrada na vida é a mesma e a partida semelhante.

7.Assim implorei e a inteligência me foi dada, supliquei e o espírito da sabedoria veio a mim.

8.Eu a preferi aos cetros e tronos, e avaliei a riqueza como um nada ao lado da Sabedoria.

9.Não comparei a ela a pedra preciosa, porque todo o ouro ao lado dela é apenas um pouco de areia, e porque a prata diante dela será tida como lama.

10.Eu a amei mais do que a saúde e a beleza, e gozei dela mais do que da claridade do sol, porque a claridade que dela emana jamais se extingue.

11.Com ela me vieram todos os bens, e nas suas mãos inumeráveis riquezas.

12.De todos esses bens eu me alegrei, porque é a Sabedoria que os guia, mas ignorava que ela fosse sua mãe.

13.Eu estudei lealmente e reparto sem inveja e não escondo a riqueza que ela encerra,

14.porque ela é para os homens um tesouro inesgotável; e os que a adquirem preparam-se para se tornar amigos de Deus, recomendados (a ele) pela educação que ela lhes dá.

15.Que Deus me permita falar como eu quisera, e ter pensamentos dignos dos dons que recebi, porque é ele mesmo quem guia a sabedoria e emenda os sábios,

16.porque nós estamos nas suas mãos, nós e nossos discursos, toda a nossa inteligência e nossa habilidade;

17.foi ele quem me deu a verdadeira ciência de todas as coisas, quem me fez conhecer a constituição do mundo e as virtudes dos elementos,

18.o começo, o fim e o meio dos tempos, a sucessão dos solstícios e as mutações das estações,

19.os ciclos do ano e as posições dos astros,

20.a natureza dos animais e os instintos dos brutos, os poderes dos espíritos e os pensamentos dos homens, a variedade das plantas e as propriedades das raízes.

21.Tudo que está escondido e tudo que está aparente eu conheço: porque foi a sabedoria, criadora de todas as coisas, que mo ensinou.

22.Há nela, com efeito, um espírito inteligente, santo, único, múltiplo, sutil, móvel, penetrante, puro, claro, inofensivo, inclinado ao bem, agudo,

23.livre, benéfico, benévolo, estável, seguro, livre de inquietação, que pode tudo, que cuida de tudo, que penetra em todos os espíritos, os inteligentes, os puros, os mais sutis.

24.Mais ágil que todo o movimento é a Sabedoria, ela atravessa e penetra tudo, graças à sua pureza.

25.Ela é um sopro do poder de Deus, uma irradiação límpida da glória do Todo-poderoso; assim mancha nenhuma pode insinuar-se nela.

26.É ela uma efusão da luz eterna, um espelho sem mancha da atividade de Deus, e uma imagem de sua bondade.

27.Embora única, tudo pode; imutável em si mesma, renova todas as coisas. Ela se derrama de geração em geração nas almas santas e forma os amigos e os intérpretes de Deus,

28.porque Deus somente ama quem vive com a sabedoria!

29.É ela, com efeito, mais bela que o sol e ultrapassa o conjunto dos astros. Comparada à luz, ela se sobreleva,

30.porque à luz sucede a noite, enquanto que, contra a Sabedoria, o mal não prevalece.

 

1.Ela estende seu vigor de uma extremidade do mundo à outra e governa todas as coisas com felicidade.

2.Eu a amei e procurei desde minha juventude, esforçei-me por tê-la por esposa e me enamorei de seus encantos.

3.Ela mostra a nobreza de sua origem em conviver com Deus, ela é amada pelo Senhor de todas as coisas.

4.Ela é iniciada na ciência de Deus e, por sua escolha, decide de suas obras.

5.Se a riqueza é um bem desejável na vida, que há de mais rico que a Sabedoria que tudo criou?

6.Se a inteligência do homem consegue operar, o que, então, mais que a Sabedoria, é artífice dos seres?

7.E se alguém ama a justiça, seus trabalhos são virtudes; ela ensina a temperança e a prudência, a justiça e a força: não há ninguém que seja mais útil aos homens na vida.

8.Se alguém deseja uma vasta ciência, ela sabe o passado e conjectura o futuro; conhece as sutilezas oratórias e revolve os enigmas; prevê os sinais e os prodígios, e o que tem que acontecer no decurso das idades e dos tempos.

9.Portanto, resolvi tomá-la por companheira de minha vida, cuidando que ela será para mim uma boa conselheira, e minha consolação nos cuidados e na tristeza.

10.Graças a ela, receberei as honras das multidões, e, embora jovem como sou, o respeito dos anciãos.

11.Reconhecerão a penetração de meu julgamento, e excitarei a admiração dos reis.

12.Se me calo, esperarão que eu fale; se falo, estarão atentos; e se prolongo meu discurso, levarão a mão à boca.

13.Por meio dela obterei a imortalidade, e deixarei à posteridade uma lembrança eterna.

14.Governarei povos e as nações ser-me-ão submissas.

15.Príncipes temíveis estarão cheios de medo ao ouvirem falar de mim; mostrar-me-ei bom para com o povo e valoroso no combate.

16.Recolhido em minha casa, repousarei junto dela, porque a sua convivência não tem nada de desagradável, e sua intimidade nada de fastidioso; ela traz consigo, pelo contrário, o contentamento e a alegria!

17.Meditando comigo mesmo nesses pensamentos, e considerando em meu coração que a imortalidade se encontra na aliança com a Sabedoria,

18.a alegria perfeita na sua amizade, contínua riqueza na sua atividade, inteligência nas lições de seus entretenimentos familiares, e glória na comunicação de suas sentenças, saí à sua procura a fim de possuí-la em mim.

19.Eu era um menino vigoroso, dotado de uma alma excelente,

20.ou antes, como era bom, eu vim a um corpo intacto;

21.mas, consciente de não poder possuir a sabedoria, a não ser por dom de Deus, (e já era inteligência o saber de onde vem o dom), eu me voltei para o Senhor, e invoquei-o, dizendo do fundo do coração:

 

1.Deus de nossos pais, e Senhor de misericórdia, que todas as coisas criastes pela vossa palavra,

2.e que, por vossa sabedoria, formastes o homem para ser o senhor de todas as vossas criaturas,

3.governar o mundo na santidade e na justiça, e proferir seu julgamento na retidão de sua alma,

4.dai-me a Sabedoria que partilha do vosso trono, e não me rejeiteis como indigno de ser um de vossos filhos.

5.Sou, com efeito, vosso servo e filho de vossa serva, um homem fraco, cuja existência é breve, incapaz de compreender vosso julgamento e vossas leis;

6.porque qualquer homem, mesmo perfeito, entre os homens, não será nada, se lhe falta a Sabedoria que vem de vós.

7.Ora, vós me escolhestes para ser rei de vosso povo e juiz de vossos filhos e vossas filhas.

8.Vós me ordenastes construir um templo na vossa montanha santa e um altar na cidade em que habitais: imagem da sagrada habitação que preparastes desde o princípio.

9.Mas, ao lado de vós está a Sabedoria que conhece vossas obras; ela estava presente quando fizestes o mundo, ela sabe o que vos é agradável, e o que se conforma às vossas ordens.

10.Fazei-a, pois, descer de vosso santo céu, e enviai-a do trono de vossa glória, para que, junto de mim, tome parte em meus trabalhos, e para que eu saiba o que vos agrada.

11.Com efeito, ela sabe e conhece todas as coisas; prudentemente guiará meus passos, e me protegerá no brilho de sua glória.

12.Assim, minhas obras vos serão agradáveis; governarei vosso povo com justiça, e serei digno do trono de meu pai.

13.Que homem, pois, pode conhecer os desígnios de Deus, e penetrar nas determinações do Senhor?

14.Tímidos são os pensamentos dos mortais, e incertas as nossas concepções;

15.porque o corpo corruptível torna pesada a alma, e a morada terrestre oprime o espírito carregado de cuidados.

16.Mal podemos compreender o que está sobre a terra, dificilmente encontramos o que temos ao alcance da mão. Quem, portanto, pode descobrir o que se passa no céu?

17.E quem conhece vossas intenções, se vós não lhe dais a Sabedoria, e se do mais alto dos céus vós não lhe enviais vosso Espírito Santo?

 

1.O primeiro homem, o pai do mundo, que foi criado sozinho, foi a Sabedoria que cuidou dele, tirou-o de seu próprio pecado,

2.e deu-lhe o poder de reinar sobre todas as coisas.

3.E porque o perverso, na sua ira, dela se afastou, pereceu depois de seu furor fratricida.

4.E estando a terra submersa por causa dele pelo dilúvio, a Sabedoria de novo o salvou, conduzindo o justo num lenho sem valor.

5.E quando as nações unânimes caíram no mal, foi ela que distinguiu o justo, o manteve irrepreensível diante de Deus, e lhe deu a força para vencer sua ternura pelo seu filho.

6.Foi ela que, quando do aniquilamento dos ímpios, salvou o justo, subtraindo-o ao fogo que descera sobre a Pentápole,

7.cuja perversidade ainda no presente é testemunhada por uma terra fumegante e deserta, onde as árvores carregam frutos incapazes de amadurecer, e onde está erigida uma coluna de sal, memorial de uma alma incrédula.

8.Porque aqueles que desprezaram a Sabedoria, não somente se prejudicaram em ignorar o bem, mas ainda deixaram aos homens um testemunho de sua loucura, para que seus pecados não fossem esquecidos.

9.Quanto aos que a honram, a Sabedoria os liberta de sofrimentos;

10.foi ela que guiou por caminhos retos o justo que fugia à ira de seu irmão; mostrou-lhe o reino de Deus, e deu-lhe o conhecimento das coisas santas; ajudou-o nos seus trabalhos, e fez frutificar seus esforços;

11.cuidou dele contra ávidos opressores e o fez conquistar riquezas;

12.ela o protegeu contra seus inimigos e o defendeu dos que lhe armavam ciladas; e no duro combate, deu-lhe vitória, a fim de que ele soubesse quanto a piedade é mais forte que tudo.

13.Ela não abandonou o justo vendido, mas preservou-o do pecado.

14.Desceu com ele à prisão, e não o abandonou nas suas cadeias, até que lhe trouxe o cetro do reino e o poder sobre os que o tinham oprimido; revelou-lhe a mentira de seus acusadores, e conferiu-lhe uma glória eterna.

15.Foi ela que livrou das nações que o tiranizavam, o povo santo e a raça irrepreensível;

16.entrou na alma do servo de Deus, e se opôs, com sinais e prodígios, a reis temíveis.

17.Deu aos santos o galardão de seus trabalhos, conduziu-os por um caminho miraculoso; durante o dia serviu-lhes de proteção, e deu-lhes a luz dos astros, durante a noite.

18.Fê-los atravessar o mar Vermelho, e deu-lhes passagem através da massa das águas,

19.ao passo que engoliu seus inimigos, e depois os tirou das profundezas do abismo.

20.Também os justos, depois de despojados os ímpios, celebraram, Senhor, vosso santo nome, e louvaram, unidos num só coração, vossa mão protetora,

21.porque a Sabedoria abriu a boca aos mudos, e tornou eloqüente a língua das crianças.


 

1.Pela mão de um santo profeta aplanou suas dificuldades;

2.eles atravessaram um deserto inabitado, e levantaram suas tendas em lugares ermos;

3.resistiram aos que os atacavam, e repeliram seus inimigos.

4.Tiveram sede e clamaram a vós: do rochedo abrupto a água lhes foi dada, e da pedra seca estancaram sua sede.

5.Porque os elementos que tinham servido para punir seus inimigos, foram-lhes dados, na sua necessidade, como benefício:

6.em lugar das ondas de um rio perene turvadas por uma lama de sangue,

7.pela punição do decreto que consagrava crianças à morte, vós lhes destes, de maneira inesperada, água em abundância,

8.mostrando-lhes, pela sede que então sofreram, como punistes seus inimigos.

9.Por isso, tratados com piedade na sua provação, reconheceram quanto deviam ter sofrido os ímpios, julgados com ira.

10.A estes provastes como um pai que corrige, mas a outros provastes como um rei severo que condena.

11.Tanto estando longe como perto, a dor os consumiu da mesma forma,

12.porque tiveram um segundo para se entristecer e gemer à lembrança dos males passados.

13.Compreendendo, com efeito, que o que era para eles castigo, era para outros ocasião de benefício, sentiram a mão do Senhor;

14.e aquele que, outrora exposto e abandonado, tinham repelido com zombaria, admiraram-no finalmente, porque sofreram uma sede diferente da sede do justo.

15.Por outro lado, para os punir dos loucos pensamentos de sua perversidade, que os faziam extraviar-se na adoração de répteis irracionais e de vis animais, enviastes contra eles uma multidão de animais estúpidos,

16.a fim de que compreendessem que por onde cada um peca, será punido.

17.Não era difícil à vossa mão todo-poderosa, que formou o mundo de matéria informe, mandar contra eles bandos de ursos e de leões ferozes,

18.ou animais desconhecidos e duma nova espécie, cheios de furor, exalando um hálito inflamado, ou espalhando um fumo infecto, ou lançando de seus olhos faíscas terríveis,

19.capazes não só de os exterminar com seus golpes, mas ainda de os matar de terror só pelo seu aspecto.

20.E, mesmo sem isso, eles poderiam perecer por um sopro, perseguidos pela justiça e arrebatados pelo vento de vosso poder; mas, dispusestes tudo com medida, quantidade e peso,

21.porque sempre vos é possível mostrar vosso poder imenso, e quem poderá resistir à força de vosso braço?

22.Diante de vós o mundo inteiro é como um nada, que faz pender a balança, ou como uma gota de orvalho, que desce de madrugada sobre a terra.

23.Tendes compaixão de todos, porque vós podeis tudo; e para que se arrependam, fechais os olhos aos pecados dos homens.

24.Porque amais tudo que existe, e não odiais nada do que fizestes, porquanto, se o odiásseis, não o teríeis feito de modo algum.

25.Como poderia subsistir qualquer coisa, se não o tivésseis querido, e conservar a existência, se por vós não tivesse sido chamada?

26.Mas poupais todos os seres, porque todos são vossos, ó Senhor, que amais a vida.

1.Vosso espírito incorruptível está em todos.

2.É por isso que castigais com brandura aqueles que caem, e os advertis mostrando-lhes em que pecam, a fim de que rejeitem sua malícia e creiam em vós, Senhor.

3.Foi assim que se deu com os antigos habitantes da Terra Santa.

4.Tínheis horror deles por causa de suas obras detestáveis, sua magia e seus ritos ímpios,

5.seus cruéis morticínios de crianças, seus festins de entranhas, carne humana e sangue, suas iniciações nos mistérios orgíacos,

6.e os crimes de pais contra seres indefesos; e resolvestes aniquilá-los pela mão de nossos pais,

7.para que esta terra, que estimais entre todas, recebesse uma digna colônia de filhos de Deus.

8.Contudo, porque também eles eram homens, vós os poupastes, enviando-lhes vespas precursoras de vosso exército, para que elas os fizessem perecer pouco a pouco.

9.Não é que vos fosse impossível esmagar os maus por meio dos justos num combate, ou exterminar todos juntos por animais ferozes ou por uma palavra categórica;

10.mas castigando-os pouco a pouco, dáveis tempo para o arrependimento, não ignorando que sua raça era maldita, ingênita a sua perversidade, e que jamais seus pensamentos se mudariam,

11.porque sua estirpe era má desde a origem... Não era por temor do que quer que fosse que vos mostráveis indulgente para com eles em seus pecados.

12.Porque, quem ousará dizer-vos: Que fizeste tu? E quem se oporá a vosso julgamento? Quem vos repreenderá de terdes aniquilado nações que criastes? Ou quem se levantará contra vós para defender os culpados?

13.Não há, fora de vós, um Deus que se ocupa de tudo, e a quem deveis mostrar que nada é injusto em vosso julgamentos;

14.nem um rei, nem um tirano que vos possa resistir em favor dos que castigastes.

15.Mas porque sois justo, governais com toda a justiça, e julgais indigno de vosso poder condenar quem não merece ser punido.

16.Porque vossa força é o fundamento de vossa justiça e o fato de serdes Senhor de todos, vos torna indulgente para com todos.

17.Mostrais vossa força aos que não crêem no vosso poder, e confundis os que a não conhecem e ousam afrontá-la.

18.Senhor de vossa força, julgais com bondade, e nos governais com grande indulgência, porque sempre vos é possível empregar vosso poder, quando quiserdes.

19.Agindo desta maneira, mostrastes a vosso povo que o justo deve ser cheio de bondade, e inspirastes a vossos filhos a boa esperança de que, após o pecado, lhes dareis tempo para a penitência;

20.porque se os inimigos de vossos filhos, dignos de morte, vós os haveis castigado com tanta prudência e longanimidade, dando-lhes tempo e ocasião para se emendarem,

21.com quanto cuidado não julgareis vós os vossos filhos, a cujos antepassados concedestes com juramento vossa aliança, repleta de ricas promessas!

22.Portanto, quando nos corrigis, castigais mil vezes mais nossos inimigos, para que em nossos julgamentos nos lembremos de vossa bondade, e para que esperemos em vossa indulgência quando somos julgados.

23.Por isso também aqueles que loucamente viveram no mal, vós os torturastes por meio das suas próprias abominações:

24.porque se tinham afastado demais nos caminhos do erro, tomando por deuses os mais vis animais, deixando-se enganar como meninos sem razão;

25.assim é que, como a meninos sem razão, lhes destes um castigo irrisório.

26.Mas os que recusam a advertência de semelhante correção sofrerão um castigo digno de Deus.

27.Excitados, então, pelos sofrimentos causados por esses animais que tinham julgado deuses, e que os atormentavam, viram o que no começo tinham recusado ver, e reconheceram o verdadeiro Deus. Por isso é que caiu sobre eles a condenação final.


 

 

1.São insensatos por natureza todos os que desconheceram a Deus, e, através dos bens visíveis, não souberam conhecer Aquele que é, nem reconhecer o Artista, considerando suas obras.

2.Tomaram o fogo, ou o vento, ou o ar agitável, ou a esfera estrelada, ou a água impetuosa, ou os astros dos céus, por deuses, regentes do mundo.

3.Se tomaram essas coisas por deuses, encantados pela sua beleza, saibam, então, quanto seu Senhor prevalece sobre elas, porque é o criador da beleza que fez estas coisas.

4.Se o que os impressionou é a sua força e o seu poder, que eles compreendam, por meio delas, que seu criador é mais forte;

5.pois é a partir da grandeza e da beleza das criaturas que, por analogia, se conhece o seu autor.

6.Contudo, estes só incorrem numa ligeira censura, porque, talvez, eles caíram no erro procurando Deus e querendo encontrá-lo:

7.vivendo entre suas obras, eles as observam com cuidado, e porque eles as consideram belas, deixam-se seduzir pelo seu aspecto.

8.Ainda uma vez, entretanto, eles não são desculpáveis,

9.porque, se eles possuíram luz suficiente para poder perscrutar a ordem do mundo, como não encontraram eles mais facilmente aquele que é seu Senhor?

10.Mas são desgraçados e esperam em mortos, aqueles que chamaram de deuses a obras de mãos humanas: o ouro, a prata, artisticamente trabalhados, figuras de animais, alguma pedra inútil, a que, outrora, certa mão deu forma.

11.Assim, um lenhador cortou e serrou uma árvore fácil de manejar. Habilmente ele lhe tirou toda a casca, e com a habilidade do seu ofício, fez dela um móvel útil para seu uso.

12.Com as sobras de seu trabalho, cozinhou comida, com que se saciou.

13.O que ainda lhe restava, não era bom para nada, não passando de madeira torcida e toda cheia de nós; contudo, ele a tomou e consagrou suas horas de lazer a talhá-la; ele a trabalhou com toda a arte que adquirira, e lhe deu a semelhança de um homem,

14.ou o aspecto de algum vil animal. Pôs-lhe vermelhão, uma demão de uma tinta encarnada, e encobriu-lhe cuidadosamente todo defeito.

15.Em seguida, preparou-lhe um nicho digno dele. e o fixou à parede, segurando-o com um prego:

16.foi por medo que caísse, que tomou este cuidado, porque sabe muito bem que ele não pode ajudar-se a si mesmo, pois não passa de uma estátua que tem necessidade de um apoio.

17.Mas quando lhe implora por seus bens, seus casamentos, seus filhos, não se envergonha de falar ao que é inanimado, e pede saúde ao que é desprezível.

18.Reclama a vida ao que é morto, e procura socorro no que é débil; e para uma viagem, invoca o que não pode andar;

19.para um lucro, um trabalho, o bom êxito de uma obra de suas mãos, pede a força ao que nem é capaz de mover as mãos.

 

 

 

1.Outro, por sua vez, que quer navegar e se prepara para atravessar as impetuosas ondas, invoca um madeiro de pior qualidade que o navio que o leva;

2.porque o desejo do lucro inventou o navio, e uma hábil sabedoria dirigiu sua construção.

3.Mas sois vós, Pai, que o governais pela vossa Providência, porque, se abristes caminho, mesmo no mar, e uma rota segura no meio das ondas -

4.mostrando por aí que vós podeis tirar do perigo aquele que as afronta mesmo sem meios -,

5.quereis entretanto que não sejam inúteis as obras de vossa sabedoria. Por isso os homens confiam a própria vida a um pouco de madeira e atravessam em segurança as ondas num navio.

6.Assim, com efeito, quando na origem dos tempos fizestes perecer gigantes orgulhosos, a esperança do universo, refugiando-se num barco, que vossa mão governava, conservou para o mundo o germe de uma geração.

7.Porque é bendito o madeiro pelo qual se opera a justiça,

8.mas maldito é o ídolo, ele e o que o fez; este porque o formou, aquele porque, sendo corruptível, leva o nome de deus.

9.Com efeito, Deus odeia tanto o ímpio quanto sua impiedade,

10.e a obra sofrerá o mesmo castigo que o autor.

11.Este é o motivo porque também os ídolos das nações serão julgados, porque, na criação de Deus, eles se tornaram uma abominação, objetos de escândalo para os homens, e laços para os pés dos insensatos.

12.É pela idealização dos ídolos que começou a apostasia, e sua invenção foi a perda dos humanos.

13.Eles não existiam no princípio e não durarão para sempre;

14.a vaidade dos homens os introduziu no mundo. E, por causa disso, Deus decidiu a sua destruição para breve.

15.Um pai aflito por um luto prematuro, tendo mandado fazer a imagem do filho, tão cedo arrebatado, honrou, em seguida, como a um deus aquele que não passava de um morto, e transmitiu, aos seus, certos ritos secretos e cerimônias.

16.Este costume ímpio, tendo-se firmado com o tempo, foi depois observado como lei.

17.Foi também em conseqüência das ordens dos príncipes que se adoraram imagens esculpidas, porque aqueles que não podiam honrar pessoalmente, porque moravam longe deles, fizeram representar o que se achava distante, e expuseram publicamente a imagem do rei venerado, a fim de lisonjeá-lo de longe com seu zelo, como se estivesse presente.

18.Isto contribuiu ainda para o estabelecimento deste culto, mesmo entre os que não conheciam o rei; foi a ambição do artista,

19.que, talvez, querendo agradar ao soberano, deu-lhe, por sua arte, a semelhança do belo;

20.e a multidão, seduzida pelo encanto da obra, em breve tomou por deus aquele que tinham honrado como homem.

21.E isto foi uma cilada para a humanidade: os homens, sujeitando-se à lei da desgraça e da tirania, deram à pedra e à madeira o nome incomunicável.

22.Como se não bastasse terem errado acerca do conhecimento de Deus, embora passando a vida numa longa luta de ignorância, eles dão o nome de paz a um estado tão infeliz.

23.Com efeito, sacrificando seus filhos, celebrando mistérios ocultos, ou entregando-se a orgias desenfreadas de religiões exóticas,

24.eles já não guardam a honestidade nem na vida nem no casamento, mas um faz desaparecer o outro pelo ardil, ou o ultraja pelo adultério.

25.Tudo está numa confusão completa - sangue, homicídio, furto, fraude, corrupção, deslealdade, revolta, perjúrio,

26.perseguição dos bons, esquecimento dos benefícios, contaminação das almas, perversão dos sexos, instabilidade das uniões, adultérios e impudicícias -

27.porque o culto de inomináveis ídolos é o começo, a causa e o fim de todo o mal.

28.(Seus adeptos) incitam o prazer até a loucura, ou fazem vaticínios falsos, ou vivem na injustiça, ou, sem escrúpulo, juram falso,

29.porque, confiando em ídolos inanimados, esperam não ser punidos de sua má fé.

30.Contudo, o castigo os atingirá por duplo motivo: porque eles desconheceram a Deus, afeiçoando-se aos ídolos, e porque são culpados, por desprezo à santidade da religião, de ter feito juramentos enganadores.

31.Pois não é o poder dos ídolos invocados, mas o castigo reservado ao pecador, que sempre persegue as faltas dos maus.

 

1.Mas vós, Deus nosso, sois benfazejo e verdadeiro, vós sois paciente e tudo governais com misericórdia;

2.com efeito, mesmo se pecamos, somos vossos, porque conhecemos vosso poder; mas não pecaremos, cientes de que somos considerados como vossos.

3.Porque conhecer-vos é a perfeita justiça, e conhecer vosso poder é a raiz da imortalidade.

4.Não fomos seduzidos pelas invenções da arte corruptora dos homens nem pelo vão trabalho dos pintores: borrada figura de cores misturadas,

5.cuja vista excita os desejos dos insensatos, fantasma inanimado de uma imagem sem vida que provoca a paixão!

6.Cativados pelo mal, não merecem esperar senão o mal, os que o fazem, os que o amam e os que o veneram.

7.Eis, portanto, um oleiro que amassa laboriosamente a terra mole, e forma diversos objetos para nosso uso, mas da mesma argila faz vasos destinados a fins nobres e outros, indiferentemente, para usos opostos. Para qual destes usos cada vaso será aplicado? O oleiro será o juiz.

8.Do mesmo barro, forma também, como obreiro perverso, uma vã divindade, ele que, ainda há pouco, nasceu da terra, e em breve voltará a ela, de onde foi tirado, quando lhe serão pedidas as contas de sua vida.

9.Ele mesmo não tem preocupação alguma com o próprio desfalecimento, nem com a brevidade da vida; ele rivaliza, pelo contrário, com aqueles que trabalham o ouro e a prata, imita os que trabalham o cobre.

10.Pó é o seu coração, mais vil que a terra sua esperança, e põe sua glória em fabricar objetos enganadores. E mais desprezível que o barro é sua vida,

11.porque não reconheceu aquele que o formou, aquele que lhe inspirou uma alma ativa e lhe insuflou o espírito vital.

12.Para ele a vida é um divertimento, e nossa existência um mercado lucrativo, porque, diz ele, é preciso aproveitar-se de tudo, mesmo do mal.

13.Mais que qualquer outro, esse homem sabe que peca, fazendo do mesmo barro vasos frágeis e ídolos.

14.Ora, verdadeiramente, muito insensatos, mais infortunados que a alma da criança, são os inimigos de vosso povo, que o oprimiram,

15.porque eles também tiveram por deuses todos os ídolos das nações, que não podem servir-se de seus olhos para ver, que não têm nariz para aspirar o ar, nem ouvidos para ouvir, nem os dedos das mãos para apalpar, e cujos pés são incapazes de andar;

16.foi, com efeito, um homem que os fez, formou-os alguém que recebeu a alma de empréstimo. Nenhum homem pode fazer um deus, mesmo semelhante a si próprio,

17.porque, sendo ele próprio mortal, morto é tudo que produz com suas mãos ímpias. De fato, ele vale mais que os objetos que venera; ele, pelo menos, tem vida, enquanto os ídolos não a têm.

18.Chega-se até a adorar os mais odiosos animais, que são piores ainda que os outros animais irracionais,

19.que nem mesmo possuem o que outros seres vivos possuem: bastante beleza para serem amados, e que foram excluídos da aprovação e da bênção de Deus.

 

1.Por isso foram justamente castigados por animais dessa espécie e atormentados por uma multidão de animais;

2.em vez de feri-lo assim, vós favorecíeis vosso povo, satisfazendo por um alimento surpreendente o ardor de seu apetite, e oferecendo-lhe por alimento codornizes.

3.De tal modo que aqueles, mau grado sua fome, diante do aspecto hediondo de animais enviados contra eles, experimentaram a náusea; estes, após uma curta privação, receberam um alimento maravilhoso.

4.Pois era preciso que os primeiros, os opressores, fossem oprimidos por uma inexorável fome, e que aos outros fossem apenas mostrados os tormentos suportados por seus inimigos.

5.Efetivamente, quando o cruel furor dos animais os atingiu também, e quando pereceram com a mordedura de sinuosas serpentes, vossa cólera não durou até o fim.

6.Foram por pouco tempo atormentados, para sua correção: eles possuíram um sinal de salvação que lhes lembrava o preceito de vossa lei.

7.E quem se voltava para ele era salvo, não em vista do objeto que olhava, mas por vós, Senhor, que sois o salvador de todos.

8.Com isso mostráveis a vossos inimigos, que sois vós que livrais de todo o mal.

9.Quanto a eles as mordeduras dos gafanhotos e das moscas os matavam e não se encontrou remédio para salvar sua vida, porque mereciam ser castigados por tais instrumentos;

10.mas a vossos filhos, mesmo os dentes de serpentes venenosas não os puderam vencer, porque sobrevindo a vossa misericórdia curou-os.

11.Eram picados, para que se lembrassem de vossas palavras, e, em seguida, ficavam curados, para que não viessem a esquecê-las completamente e a subtraírem-se a si mesmos de vossos benefícios.

12.Não foi uma erva nem algum ungüento que os curou, mas a vossa palavra que cura todas as coisas, Senhor.

13.Porque vós sois senhor da vida e da morte. Vós conduzis às portas do Hades e de lá tirais;

14.enquanto o homem, se pode matar por sua maldade, não pode fazer voltar o espírito uma vez saído, nem chamar de volta a alma que o Hades já recebeu.

15.Escapar à vossa mão é impossível,

16.e os ímpios, que recusaram conhecer-vos, foram fustigados pela força de vosso braço, perseguidos por chuvas extraordinárias, saraivas e implacáveis tempestades, e consumidos pelo fogo dos raios.

17.O que havia de mais admirável ainda, é que, na água que tudo extingue, o fogo tomava mais violência, porque o universo toma a defesa dos justos.

18.Ora, a chama temperava seu ardor para não queimar os animais enviados contra os ímpios, para que estes se apercebessem e reconhecessem que eram perseguidos pelo julgamento de Deus.

19.Ora, excedendo sua força habitual, o fogo ardia mesmo no meio da água para destruir os frutos de uma terra iníqua...

20.Mas, pelo contrário, foi com o alimento dos anjos que alimentastes vosso povo, e foi do céu que, sem fadiga, vós lhe enviastes um pão já preparado, contendo em si todas as delícias e adaptando-se a todos os gostos.

21.Esta substância que dáveis se parecia com a doçura que mostráveis a vossos filhos. Ela se adaptava ao desejo de quem a comia, e transformava-se naquilo que cada qual desejava.

22.(Embora fosse como) neve e gelo, ela suportava o fogo sem se fundir, para mostrar que era para os inimigos que o fogo destruía as colheitas, quando ardia, apesar da saraiva, e brilhava debaixo de chuvas,

23.enquanto que, quando se tratava de alimentar os justos, até perdia sua natural violência.

24.A criatura que vos é submissa, a vós, seu Criador, aumenta sua força para castigar os maus, e os modera para o bem dos que puseram em vós sua fé.

25.Do mesmo modo, transformada em tudo que se queria, servia à vossa generosidade que a todos alimenta, segundo a vontade dos que dela tinham necessidade,

26.para que os filhos que vós amais, Senhor, aprendessem que não são os frutos da terra que alimentam o homem, mas é vossa palavra que conserva em vida aqueles que crêem em vós.

27.O que não era destruído pelo fogo, fundia-se ao simples calor de um raio de sol,

28.para que se soubesse que é preciso antecipar-se ao sol para vos agradecer, e que é preciso adorar-vos antes de raiar o dia;

29.porque a esperança do ingrato é como a geleira do inverno, que se derramará como água inútil.

 

1.Em verdade, grandes e impenetráveis são vossos juízos, Senhor; por isso as almas grosseiras caíram no erro.

2.Por terem acreditado que podiam oprimir a santa nação, os ímpios, prisioneiros das trevas e encarcerados por uma longa noite, jaziam encerrados nas suas casas, tentando escapar à vossa incessante vigilância.

3.Depois de terem imaginado que, com seus secretos pecados, ficariam escondidos sob o sombrio véu do esquecimento, eles se viram dispersados, como presa de um terrível espanto, e amedrontados por alucinações.

4.Mesmo o canto mais afastado em que se abrigavam não os punha ao abrigo do terror: ruídos aterradores ressoavam em torno deles, e taciturnos espectros de lúgubre aspecto lhes apareciam.

5.Nenhuma chama, por intensa que fosse, chegava a iluminar. E a luz brilhante dos astros era impotente para alumiar esta noite sombria.

6.Mas aparecia-lhes de súbito nada mais que uma chama aterradora, e, tomados de terror por esta visão fugitiva, julgavam essas aparições mais terríveis ainda.

7.A arte dos mágicos se mostrou ilusória, e esta sabedoria, a que eles pretendiam, evidenciou-se vergonhosamente como falsidade.

8.Aqueles que se jactavam de banir das almas doentes o terror e a perturbação, eram eles mesmos atormentados por um ridículo temor.

9.Mesmo quando nada de mais grave os aterrorizava, a passagem dos animais e o silvo das serpentes punham-nos fora de si, e eles morriam de medo. Recusavam até mesmo contemplar essa atmosfera à qual nada podia escapar;

10.porque a maldade, condenada por seu próprio testemunho, é medrosa, e, sob o peso da consciência, supõe sempre o pior,

11.pois o temor não é outra coisa que a privação dos socorros trazidos pela reflexão,

12.porque, quanto menor for em sua alma a esperança de auxílio, tanto mais penosa é a ignorância daquilo de que se tem medo.

13.Eles, durante essa noite de impotência, saída dos recantos do Hades impotente, dormiam num mesmo sono,

14.agitados, de um lado, pelo terror dos espectros, e paralisados, de outro, pelo desfalecimento da alma; pois era um pavor repentino e inesperado o que se abatera sobre eles.

15.E todo aquele que caía sem força, ficava como que preso e encerrado num cárcere sem ferros.

16.Fosse ele camponês ou pastor, ou o operário que se afadiga sozinho no seu trabalho, uma vez surpreendido, tinha de suportar a inevitável necessidade, porque todos estavam ligados por uma mesma cadeia de trevas.

17.O silvo do vento, o canto harmonioso dos passarinhos nos ramos espessos, o murmúrio da água correndo precipitadamente, o estrondo das rochas que se despenhavam,

18.a carreira invisível dos animais que saltavam, os urros dos animais selvagens, o eco que repercutia nas cavidades dos montes: tudo os paralisava de terror.

19.Enquanto o mundo inteiro era alumiado de uma brilhante luz, e sem obstáculo se entregava às suas ocupações,

20.somente sobre eles se estendia uma pesada noite, imagem das trevas que mais tarde os deviam acolher; e eram para si mesmos um peso mais insuportável que esta escuridão.

1.Contudo, para vossos santos havia uma luz brilhantíssima. Sem verem seus semblantes, os outros ouviam-lhes a voz, e julgavam-nos felizes por não sofrerem os mesmos tormentos.

2.Davam-lhes graças, porque não se vingavam dos maus tratos suportados, e pediam-lhes perdão de sua inimizade.

3.Pelo contrário, vós destes uma coluna luminosa para guiá-los na sua marcha para o desconhecido, como um sol que sem incomodá-los alumiava seu glorioso êxodo.

4.Mas eles bem mereciam ser privados da luz e aprisionados nas trevas, eles, que tinham encerrado em prisões os vossos filhos, através dos quais a incorruptível luz da lei se devia comunicar ao mundo.

5.Também tinham resolvido levar à morte os filhos dos santos, mas um deles foi exposto e salvo, e para puni-los fizestes perecer em multidão os seus filhos, e, todos juntos, vós os aniquilastes na profundeza das águas.

6.Esta mesma noite tinha sido conhecida de antemão por nossos pais, para que, conhecendo bem em que juramentos confiavam, ficassem cheios de coragem.

7.Assim vosso povo esperava tanto a salvação dos justos como a perdição dos ímpios,

8.e pelo mesmo fato de terdes destruído nossos inimigos, vós nos convidastes a ser vossos e nos honrastes.

9.Por isso, os santos filhos dos justos ofereciam secretamente um sacrifício; de comum acordo estabeleciam o pacto divino: que os santos participariam dos mesmos bens e correriam os mesmos perigos; e entoavam já os hinos de seus pais,

10.quando se elevaram os gritos confusos dos inimigos e se espalharam as lamentações dos que choravam seus filhos.

11.Uma mesma sentença feria o escravo e o senhor, o homem do povo sofria o mesmo castigo que o rei.

12.Todos igualmente tinham um número incalculável de mortos abatidos da mesma maneira; os sobreviventes não eram suficientes para sepultá-los. porque, num instante, sua melhor geração era exterminada.

13.Depois de terem permanecido incrédulos por causa de seus sortilégios, reconheceram, vendo morrer seus primogênitos, que esse povo era verdadeiramente filho de Deus,

14.porque, quando um profundo silêncio envolvia todas as coisas, e a noite chegava ao meio de seu curso,

15.vossa palavra todo-poderosa desceu dos céus e do trono real, e, qual um implacável guerreiro, arremessou-se sobre a terra condenada à ruína.

16.De pé, ela tudo encheu de morte, e, pisando a terra, tocava os céus.

17.No mesmo instante, visões e sonhos terríveis os perturbaram, e temores inesperados os assaltaram;

18.tombando aqui e acolá, semimortos, revelavam a causa da morte que os atingia;

19.porque os sonhos que os tinham agitado tinham-nos informado antecipadamente, para que eles não perecessem sem conhecer a causa de sua desgraça.

20.Verdade é que a prova da morte feriu também os justos, e numerosos foram os que ela abateu no deserto, mas a ira de Deus não durou muito tempo;

21.porque um homem irrepreensível se apressou a tomar sua defesa, servindo-se das armas de seu ministério pessoal, a oração e o sacrifício expiatório do incenso. Opôs-se à ira, e pôs fim ao flagelo, mostrando que era vosso servo.

22.Dominou a revolta, não pela força física, nem pela força das armas, mas pela sua palavra deteve aquele que castigava, relembrando-lhe os juramentos feitos aos antepassados e a aliança estabelecida.

23.Já os mortos se amontoavam uns sobre os outros, quando ele interveio, deteve a cólera e afastou-a dos vivos.

24.Na sua longa vestimenta estava representado o universo inteiro; nas quatro fileiras de pedras os nomes gloriosos dos patriarcas; e no diadema de sua cabeça vossa Majestade.

25.Diante destas coisas cedeu o exterminador e foi diante destas coisas que retrocedeu: porque a simples demonstração de vossa ira era suficiente.

1.Quanto aos ímpios, inexorável foi a ira que os perseguiu até o fim: porque Deus previa o que eles haveriam de fazer,

2.isto é, depois de terem deixado partir (os justos), instando mesmo que fossem embora, mudariam de opinião e os perseguiriam.

3.Na verdade, eles estavam ainda enlutados, e gemiam ainda sobre a tumba de seus mortos, quando loucamente tomaram outra resolução e perseguiram, como a fugitivos, aqueles aos quais tinham rogado que partissem.

4.Um merecido destino os impelia a esse proceder extremo, e os atirava no olvido dos acontecimentos passados, para que sofressem, em meio a tormentos, um castigo completo,

5.e fossem feridos de uma morte insólita, enquanto vosso povo tentava uma extraordinária passagem.

6.É que toda a criação, obedecendo às vossas ordens, foi remodelada em sua natureza, para que vossos filhos fossem conservados ilesos.

7.Foi vista uma nuvem cobrir o acampamento, e a terra seca surgir do que tinha sido água, um caminho viável formar-se no mar Vermelho, e um campo verdejante emergir das ondas impetuosas.

8.Por aí passou toda ela, a nação dos que vossa mão protegia, e que viram singulares prodígios.

9.Iam como cavalos conduzidos à pastagem, e saltavam como cordeiros, glorificando-vos a vós, Senhor, seu libertador,

10.porque eles se lembravam ainda do que tinha acontecido na terra estrangeira: como a terra, contrariando a geração dos vivos, tinha produzido moscas, e como o rio, em lugar de peixes, tinha lançado fora uma multidão de rãs.

11.Mais tarde, viram ainda nascer uma nova espécie de pássaros, quando, premidos pela cobiça, pediram manjares delicados, porquanto, para satisfazê-los, codornizes subiram do mar.

12.Os castigos não surpreenderam os pecadores, sem que fossem antes advertidos pela violência dos raios.

13.Suportavam justamente o castigo de sua própria maldade, porque tinham mostrado excessivo ódio pelo estrangeiro.

14.Houve muitos que não quiseram receber hóspedes desconhecidos, mas estes reduziram à escravidão hóspedes que tinham sido benfeitores.

15.E isso não é tudo; haverá algo a mais que um castigo qualquer para aqueles que acolheram mal os estrangeiros:

16.mas estes, a princípio, receberam bem seus hóspedes, e concederam-lhes a participação em seus direitos. Em seguida, eles os encheram de males.

17.Do mesmo modo, foram feridos de cegueira, como aqueles homens, às portas do justo, quando, envolvidos por uma profunda escuridão, procuravam, cada um de seu lado, o caminho para suas casas.

18.Assim, os elementos mudavam suas propriedades entre si, como na harpa os sons mudam de ritmo, conservando a mesma tonalidade. É o que se pode verificar perfeitamente quando se consideram esses acontecimentos.

19.Os seres terrestres tornavam-se aquáticos, os que nadam passavam à terra,

20.o fogo era mais violento debaixo da chuva, e a água esquecia a propriedade que tem de extingui-lo.

21.Além disso, as chamas não ofendiam as carnes dos frágeis animais que as atravessavam, e não liqüefaziam esse alimento celeste, semelhante ao gelo e inteiramente capaz de se derreter.

22.É que em tudo, Senhor, engrandecestes e glorificastes vosso povo, e não vos dedignastes de assisti-lo em todo o tempo e em todo o lugar.


 

Cântico dos Cânticos

 

O título de Cântico dos Cânticos representa, em hebraico, uma fór­mula de superlativo; significa o mais belo dos cânticos ou o cântico maior e coincide com as duas primeiras palavras do texto. Nessa espécie de introdução, muito sumária, a autoria do livro é atri­buída a Salomão, como acontece com os Provérbios e a Sabedoria. Não sendo verosímil, tal atribuição exprime a fama de sábio que o antigo rei conservou na tradição hebraica (ver 1 Rs 5,12-14). Com este espírito condizem bem algumas conotações salomó­nicas da própria figura do amado.


GÉNERO LITERÁRIO E DIVISÃO

Apesar da grande antiguidade do tema da poesia lírica nas culturas orientais, os eruditos tendem actual­mente a situar, com bastante consenso, a origem do texto na época pós-exí­lica recente, possi­vel­mente na Palestina.

É universalmente aceite que o código utilizado para escrever o Cântico dos Cânticos é o de um epitalâmio ou cântico nupcial. Neste género literá­rio, e nesta obra em concreto, estão presentes os modelos de poesia lírica que floresceram no Próximo Oriente Antigo, tanto na Mesopotâmia como no Egipto. Talvez este último tenha servido particularmente de modelo para o autor hebraico do Cântico. Derivará ele das canções de divertimento egíp­­­c­­­ias? Teodoro de Mopsuéstia tinha alguma razão quando o descrevia como encenação literária das núpcias de Salomão com uma filha do faraó?

Na literatura mesopotâmica temos um paralelo tentador: os textos reli­giosos sobre Dummuzi e Inanna, textos religiosos de comprovada utilização cultual, para simbolizar as grandes questões da fertilidade e da sexuali­dade com um casamento divino que serve de paradigma. Em que medida a dramática da sexualidade deste livro não depende daquela mentalidade hierogâmica? No folclore siro-palestinense há também um ritual de matrimónio cuja acção decorre em sete dias festivos. O núcleo central é constituído pela coroa­ção dos esposos, à semelhança de uma coroação real e sublinhado por cantos vários, exaltando a beleza física dos amantes e os ideais guerreiros do grupo. Por aqui se pode ver a subtileza de sentimentos e emoções na rela­ção amorosa, de que o homem oriental adquirira consciência e que formu­lava como uma dimensão transcendente da sua própria experiência humana. A sublimidade das vivências que integram a experiência do amor constitui, de imediato, e por si mesma, um importantíssimo conteúdo para a leitura do Cântico.

O género literário da poesia lírica, estruturada segundo o modelo estilís­tico e teatral de um epitalâmio, pode também explicar a composição literá­ria deste poema em quadros, cuja delimitação e atribuição a cada uma das duas principais personagens se torna difícil de fazer. Daí variarem tanto as opiniões sobre a divisão de um texto aparentemente muito simples.

A actual divisão em oito capítulos não significa sequer uma repar­tição do texto com maior evidência do que muitas outras já propostas. Para maior facilidade de leitura, identificaremos por “Ele” ou “Ela” a per­sona­gem que cada parte do poema parece sugerir.


TEOLOGIA E LEITURA CRISTÃ

Apesar do que dissemos acima, a lei­tura do Cântico dos Cânticos está sobretudo marcada, desde sempre ou quase, por uma transposição de sentido que faz dele uma alegoria, em que o amado é Deus ou o Messias, novo Salomão, e a amada é Israel ou a Igreja, como nova comunidade de Israel. Pode subsistir alguma dificuldade em definir quando é que começou esta leitura alegórica do Cântico. Há quem pense que tal significado já está presente no mo­mento da composição do texto, como intenção primeira do autor. Pelo menos, parece verosímil considerar que a atribuição de tal significado ale­gó­rico tenha constituído a razão prin­cipal para a inclusão definitiva deste livro no Cânon dos livros da Bíblia hebraica, no séc. I d.C..

Deste modo, o Cântico dos Cân­ticos transformou-se no principal veículo para exprimir uma antiga concepção bíblica da experiência re­ligiosa, sobre­t­­udo como uma relação amorosa com Deus. Algumas das mais conseguidas formulações ante­riores desta concepção de Deus en­contravam-se em Oseias (Os 2,4-25), em Jeremias (Jr 2,20; 31,1) e Isaías (Is 57,3-33). E assim, para além da leitura mais explí­cita na tradição ju­daica desde a antiguidade, que en­tende o Cântico dos Cânticos como uma grande alegoria messiânica, avul­ta igualmente, e com raízes bí­blicas não menos antigas, a leitura deste poema como a metáfora uni­ver­sal da relação religiosa com Deus.

O NT fez a transposição da metá­fora do esposo-esposa do AT para Cristo-Igreja (Ef 5,21-33; ver Jo 3,29; Ap 22,17). Aqui se joga uma subti­lís­sima concepção de Deus, ainda não suficientemente explorada; e aqui se encontra o essencial da leitura mís­tica e poética que o Cântico dos Cân­ticos tem rece­bido na tradição oci­dental e cristã e da qual podemos dar como exemplos maiores as leituras de São Bernardo, na Idade Média, e de São João da Cruz, na Idade Mo­derna.

Possivelmente, a grande dificul­dade na leitura do Cântico residiu no desiquilíbrio instaurado por uma espécie de totalitarismo alegórico das inter­­pretações. Só muito tarde se per­mitiu considerá-lo naquilo que ele é: epitalâmio, canto de admiração e de um grande amor entre uma mulher e um homem, onde o desejo e o corpo fazem parte do jogo de sedução e fruição. É este o sentido natural do Cântico dos Cânticos. E, porque não se teme enunciar o sentido das palavras, é que nos podemos abrir à revelação esca­tológica da presença guardada entre elas: a presença de Deus.

Ct 1

Diálogo apaixonado

1Cântico dos cânticos, que é de Salo­mão.

 

Ela

2Que ele me beije com beijos da sua boca!

Melhores são as tuas carícias que o vinho,

3ao olfacto são agradáveis os teus perfumes;

a tua fama é odor que se difunde.

Por isso te amam as donzelas.

4Arrasta-me atrás de ti. Corra­mos!

Faça-me entrar o rei em seus apo­sentos.

Folgaremos e alegrar-nos-emos con­­tigo;

mais do que o vinho celebrare­mos teus amores.

Com razão elas te amam.


5Sou morena, mas formosa,

mulheres de Jerusalém,

como as tendas de Quedar,

como os tecidos de Salomão.

6Não estranheis eu ser morena:

foi o sol que me queimou.

Comigo se indignaram os filhos de minha mãe,

puseram-me de guarda às vinhas;

e a minha própria vinha não guar­dei.

7Avisa-me tu, amado do meu cora­ção:

para onde levas o rebanho a apas­­centar?

Onde o recolhes ao meio-dia?

Que eu não tenha de vaguear oculta,

atrás dos rebanhos dos teus com­panheiros.

 

Ele

8Se não tens disso conhecimento,

ó mais bela das mulheres,

sai no encalço do rebanho

e apascenta as tuas cabrinhas

junto às cabanas dos pastores.


9A uma égua entre os carros do Faraó

eu te comparo, ó minha amiga.

10Formosas são as tuas faces en­tre os brincos,

e o teu pescoço com os colares!

11Para ti faremos arrecadas de ouro

com incrustações de prata.

 

Ela

12Enquanto o rei está em seu divã,

o meu nardo dá o seu perfume.

13Uma bolsinha de mirra é o meu amado para mim,

que repousa entre os meus seios;

14um cacho de alfena é o meu amado para mim,

das vinhas de En-Guédi.

 

Ele

15Ah! Como és bela, minha amiga!

Como são lindos os teus olhos de pomba!

 

Ela

16Ah! Como é belo o meu amado!

E como é doce,

como é verdejante o nosso leito!

17Cedros são as vigas da nossa casa,

e os ciprestes, o nosso tecto.

Ct 2

Vem o amado

1Eu sou o narciso de Saron, eu sou o lírio dos vales.

 

Ele

2Tal como um lírio entre os cardos

é a minha amada entre as jo­vens.

 

Ela

3Tal como a macieira entre as ár­vores da floresta

é o meu amado entre os jovens.

Anseio sentar-me à sua sombra,

que o seu fruto é doce na minha boca.

4Leve-me para a sala do banquete,

e se erga diante de mim a sua ban­deira de amor.

5Sustentem-me com bolos de pas­sas,

fortaleçam-me com maçãs,

porque eu desfaleço de amor.

6Por baixo da minha cabeça Ele põe a mão esquerda

e abraça-me a sua mão direita.

7Eu vos conjuro, mulheres de Jeru­salém,

pelas gazelas ou pelas corças do monte:

não desperteis nem perturbeis

o meu amor, até que ele queira.


8A voz de meu amado! Ei-lo que chega,

correndo pelos montes,

saltando sobre as colinas.

9O meu amado é semelhante a um gamo

ou a um filhote de gazela.

Ei-lo que espera,

por detrás do nosso muro,

olhando pelas janelas,

espreitando pelas frinchas.

10Fala o meu amado e diz-me:

 

Ele

Levanta-te! Anda, vem daí,

ó minha bela amada!

11Eis que o Inverno já passou,

a chuva parou e foi-se embora;

12despontam as flores na terra,

chegou o tempo das canções,

e a voz da rola

já se ouve na nossa terra;

13a figueira faz brotar os seus figos

e as vinhas floridas exalam per­fume.

Levanta-te! Anda, vem daí,

ó minha bela amada!

14Minha pomba, nas fendas do ro­chedo,

no escondido dos penhascos,

deixa-me ver o teu rosto,

deixa-me ouvir a tua voz.

Pois a tua voz é doce

e o teu rosto, encantador.


15Agarrai-nos as raposas,

essas raposas pequenas

que devastam as vinhas,

as nossas vinhas já floridas.

 

Ela

16O meu amado é para mim e eu para ele,

ele é o pastor entre os lírios,

17até que rebente o dia

e as sombras desapareçam.

Volta, meu amado, e sê como um gamo

ou um filhote de gazela

pelas quebradas dos montes.

 

 

Ct 3

Sonhos de amor

 

Ela

1No meu leito, toda a noite,

procurei aquele que o meu cora­ção ama;

procurei-o e não o encontrei.

2Vou levantar-me e dar voltas pela cidade:

pelas praças e pelas ruas, pro­cu­ra­rei

aquele que o meu coração ama.

Procurei-o e não o encontrei.

3Encontraram-me os guardas

que fazem ronda pela cidade:

«Vistes aquele que o meu coração ama?»

4Mal me apartei deles, logo en­con­trei

aquele que o meu coração ama.

Abracei-o e não o largarei

até fazê-lo entrar na casa de mi­nha mãe,

no quarto daquela que me gerou.


5Eu vos conjuro, mulheres de Jeru­salém,

pelas gazelas ou pelas corças do campo:

não desperteis nem perturbeis

o meu amor, até que ele queira.


6Que é isto que sobe do deserto

como colunas de fumo,

exalando aroma de mirra e in­censo

e todos os perfumes dos merca­do­res?

7Eis a sua liteira, a de Salomão!

Sessenta soldados a escoltam,

dos mais briosos de Israel,

8todos cingidos de espada,

experimentados no combate.

Cada um tem à cintura a sua es­pada,

sem temor dos perigos da noite.

9Um dossel fez para si o rei,

Salomão, com madeiras do Lí­bano:

10fez de prata os seus pilares

e o encosto, de ouro;

o seu assento é de púrpura,

o seu interior, incrustado com amor

pelas mulheres de Jerusalém.

11Saí, mulheres de Sião, e admi­rai

o rei Salomão com o diadema

com que o coroou sua mãe

no dia do seu casamento,

no dia de festa do seu coração.

 

Ct 4

Belezas da amada

 

Ele

1Ah! Como és bela, minha amiga!

Como estás linda! Teus olhos são pombas,

por detrás do teu véu.

O teu cabelo é como um rebanho de cabras

que descem do monte Guilead;

2os teus dentes são um rebanho de ovelhas,

a subir do banho, tosquiadas:

todas elas deram gémeos

e nenhuma ficou sem filhos.

3Como fita escarlate são teus lá­bios

e o teu falar é encantador;

as tuas faces são metades de romã,

por detrás do teu véu.

4O teu pescoço é como a torre de David

erguida para troféus:

dela pendem mil escudos,

tudo broquéis dos heróis.

5Os teus dois seios são dois fi­lhotes

gémeos de uma gazela

que se apascentam entre os lírios,

6antes que rebente o dia

e as sombras desapareçam.

Quero ir ao monte da mirra

e à colina do incenso.

7Toda bela és tu, ó minha amada,

e em ti defeito não há.

8Vem do Líbano, esposa,

vem do Líbano, aproxima-te.

Desce do cimo de Amaná,

do cume de Senir e do Hermon,

dos esconderijos dos leões,

das tocas dos leopardos.


9Roubaste-me o coração, minha ir­mã e minha noiva,

roubaste-me o coração com um dos teus olhares,

com uma só conta do teu colar.

10Como são doces as tuas carí­cias, minha irmã e noiva!

Muito melhores que vinho são as tuas carícias;

mais forte que todos os odores

é a fragrância dos teus perfumes.

11Os teus lábios destilam doçura, ó minha noiva;

há mel e leite sob a tua língua,

e o aroma dos teus vestidos

é como o aroma do Líbano.


12És um jardim fechado, minha ir­mã e minha esposa,

um jardim fechado, uma fonte se­­lada.

13Os teus rebentos são um pomar de romãzeiras

com frutos deliciosos,

com alfenas e nardos,

14nardo e açafrão,

cálamo e canela,

com toda a espécie de árvores de incenso,

mirra e aloés,

com todos os bálsamos escolhi­dos.

15És fonte de jardim, nascente de água viva

que jorra desde o Líbano.

 

Ela

16Levanta-te, vento norte;

vem, vento do sul;

vem soprar no meu jardim.

Que se espalhem os seus perfu­mes.

O meu amado entrará no seu jar­dim

e comerá os seus frutos delicio­sos.

Ct 5

Procurar o amado

 

Ele

1 Entrei no meu jardim, minha ir­mã e minha esposa,

colhi a minha mirra e o meu bál­samo,

do meu favo de mel,

bebi o meu vinho e o meu leite.

Comei, ó companheiros,

bebei e embriagai-vos, ó bem ama­­­dos!

 

Ela

2Eu dormia, mas de coração des­perto.

Chamam! É a voz do meu amado, batendo à porta:

 

Ele

Abre, minha irmã e amiga, pom­ba incomparável!

Tenho a cabeça coberta de orva­lho,

e os meus cabelos, das gotas da noite.

 

Ela

3Já despi a minha túnica.

Vou tornar-me a vestir?

Já lavei os meus pés.

Vou sujá-los de novo?

4Meu amado passou a sua mão pela fresta

e as minhas entranhas estreme­ce­ram por ele.

5Levantei-me para abrir ao meu amado;

as minhas mãos gotejavam mirra,

os meus dedos eram mirra escor­rendo

nos trincos da fechadura.

6Fui abrir ao meu amado

e o meu amado já tinha desa­pa­recido.

Fora de mim, corro atrás das suas palavras;

procuro e não o encontro,

chamo e não me responde.

7Encontram-me os guardas

que fazem a ronda na cidade,

espancam-me, ferem-me:

arrancam-me o véu que me cobre

os guardas das muralhas.

8Eu vos conjuro, mulheres de Jeru­salém:

se encontrardes o meu amado,

sabeis o que dizer-lhe?

Que eu desfaleço de amor.

 

Elas

9Que é o teu amado mais do que um amado,

ó mais bela das mulheres?

Que é o teu amado mais do que um amado,

para assim nos conjurares?

 

Ela

10O meu amado é alvo e rosado,

distingue-se entre dez mil;

11a sua cabeça é de ouro maciço;

são cachos de palmeira os seus cabelos,

negros como o corvo;

12os seus olhos são como pombas,

nos baixios das águas,

banhadas em leite,

pousadas no ribeiro.

13As suas faces são canteiros de bálsamo,

onde crescem plantas perfumadas;

os seus lábios são lírios,

gotejam mirra que se expande;

14os seus braços são ceptros de ouro,

engastados com pedras de Társis;

o seu ventre é marfim polido,

cravejado de safiras;

15as suas pernas são pilares de ala­bastro,

assentes em bases de ouro fino;

o seu aspecto é como o do Líbano,

um jovem esbelto como os cedros;

16a sua boca é só doçura

e todo ele é delicioso.

Este é o meu amado; este, o meu amigo,

mulheres de Jerusalém.

Ct 6

Novo retrato da amada

 

Elas

1Aonde foi o teu amado,

ó mais bela das mulheres?

Aonde foi o teu amado?

E nós o buscaremos contigo.

 

Ela

2O meu amado desceu ao seu jar­dim,

ao canteiro dos aromas,

para apascentar nos jardins

e para colher lírios.

3Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim,

ele é o pastor entre os lírios.

 

Ele

4Tu és bela, minha amada, como Tirça,

esplêndida como Jerusalém;

és terrível como as coisas gran­diosas.

5Afasta de mim os teus olhos,

os olhos que me enlouquecem.

A tua cabeleira é um rebanho de cabras

que descem de Guilead;

6os teus dentes são um rebanho de ovelhas

a subir do banho, tosquiadas:

todas elas deram gémeos

e nenhuma ficou sem filhos;

7as tuas faces são metades de romã,

por detrás do teu véu.

8Sessenta são as rainhas,

oitenta as concubinas

e as donzelas, sem conta.

9Mas ela é única, minha pomba, minha perfeita;

ela é a única para a sua mãe,

a preferida daquela que a deu à luz.

Louvam-na as donzelas quando a vêem,

celebram-na rainhas e concubinas.

 

Elas

10Quem é essa que desponta como a aurora,

bela como a Lua,

fulgurante como o Sol,

terrível como as coisas gran­dio­sas?

 

Ela

11Desci ao jardim das nogueiras,

para admirar o vigor do vale,

para ver se as vides rebentavam,

se os cachos já se abriam.


12Nem conheço o desejo que me ar­rasta

no carro com o meu príncipe.

Ct 7

A dança do amor

 

Amigos

1Volta-te, volta-te, Sulamita!

Volta-te, volta-te, para te vermos!

Que vedes na Sulamita,

quando baila entre dois coros?

 

Ele

2Quão formosos são teus pés

nas sandálias, ó princesa!

As curvas dos teus quadris

parecem colares, obra de mãos de artista.

3O teu umbigo é uma taça re­donda.

Que não falte o vinho doce!

O teu ventre é monte de trigo,

todo cercado de lírios.

4Os teus seios são dois filhotes

gémeos de uma gazela;

5o teu pescoço, uma torre de mar­fim;

os teus olhos, as piscinas de Hes­bon,

junto às portas de Bat-Rabim;

o teu nariz é como a torre do Lí­bano,

de vigia, voltada para Damasco.

6A tua cabeça ergue-se como o Car­melo

e os teus cabelos são como púr­pura;

trazem um rei cativo dos seus laços.

7Como és bela, como és desejável,

meu amor, com tais delícias!

8Esse teu porte é semelhante à palmeira,

os teus seios são os seus cachos.

9Pensei: «Vou subir à palmeira,

vou colher dos seus frutos.»

Sejam os teus seios

como cachos de uvas,

e o hálito da tua boca, perfume de maçãs.

10A tua boca bebe o melhor vinho!

 

Ela

Que ele escorra por sobre o meu amado,

molhando-lhe os lábios adorme­cidos.

11Eu pertenço ao meu amado,

e o seu desejo impele-o para mim.

12Anda, meu amado,

corramos ao campo,

passemos a noite sob os cedros;

13madruguemos pelos vinhedos,

vejamos se as vides rebentam

e se abrem os seus botões,

e se brotam as romãzeiras.

Ali te darei as minhas carícias.

14As mandrágoras exalam o seu per­­fume,

à nossa porta há toda a espécie de frutos,

frutos novos, frutos secos,

que eu guardei, meu amado, para ti.

Ct 8

Parábolas do amor

1Quem dera fosses meu irmão, amamentado aos seios da minha mãe!

Ao encontrar-te na rua beijar-te-ia,

sem censura de ninguém.

2Eu te levaria para casa de minha mãe

e tu me ensinarias;

dar-te-ia a beber do vinho perfu­mado,

do mosto das minhas romãs.

3Com a sua mão esquerda debaixo da minha cabeça,

a sua direita me abraça.

4Eu vos conjuro, mulheres de Jeru­salém;

não desperteis nem perturbeis

o meu amor, até que ele queira.

 

Elas

5Quem é essa que sobe do deserto,

encostada ao seu amado?

 

Ela

Sob a macieira te despertei,

lá onde a tua mãe sentiu as dores,

onde sentiu as dores a que te deu à luz.

6Grava-me como selo em teu co­ração,

como selo no teu braço,

porque forte como a morte é o amor,

implacável como o abismo é a pai­xão;

os seus ardores são chamas de fogo,

são labaredas divinas.

7Nem as águas caudalosas conse­guirão

apagar o fogo do amor,

nem as torrentes o podem submer­gir.

Se alguém desse toda a riqueza de sua casa

para comprar o amor,

seria ainda tratado com des­prezo.

 

Irmãos

8Temos uma irmã pequenina;

ela ainda não tem seios.

Que faremos da nossa irmã,

quando vierem falar nela?

9Se ela é uma muralha,

nela faremos ameias de prata;

se é uma porta,

reforçá-la-emos com traves de cedro.

 

Ela

10Sim, eu sou uma muralha

e os meus seios são torres.

Por isso, a seus olhos me trans­formei

naquela que traz a paz.

 

Ele

11Salomão tinha uma vinha

em Baal-Hamon.

Confiou a vinha a uns guardas:

cada um lhe dava pelo fruto mil siclos de prata.

12A minha vinha é minha, fica co­migo;

para ti, Salomão, fiquem os mil siclos,

e mais duzentos para os que lhe guardam o fruto.

13Estás sentada no meio dos jar­dins

e os companheiros escutam a tua voz.

Deixa-me também ouvir-te.

 

Ela

14Corre, meu amado! Sê como um gamo

ou um filhote de gazela,

pelos montes perfumados.

 

Job

A questão da autoria do livro de Job está muito ligada aos modos e momentos se­gundo os quais se terá processado a for­ma­ção deste conjunto literário. Definir a identidade de um autor por detrás da variedade literária que existe no livro, e que mais adiante anali­sa­remos, não será fácil. É provável, no entanto, que o seu autor principal tenha sido um israelita, certamente bom conhecedor do pensamento hebraico tradicional; daí os contínuos paralelismos literários e doutrinais entre este livro e outros da Bíblia. Por outro lado, também conhecia as grandes preo­cupações do pensamento humanista nos países vizinhos da Bíblia. A síntese entre estes dois pólos está muito bem conseguida.


NOME E DATA

A personagem central desta história é que parece não ser uma figura hebraica. O nome de Job só aparece neste livro, em Ez 14,14.20 e Tg 5,11, como uma figura lendária do passado, situado nos tempos patriar­cais e dotado de grande sabedoria. O autor israelita aproveitou tal figura para ela­borar esta obra, do género sapiencial. Isto denota apreço pela sabe­doria uni­versal ou a vontade de reconhecer todos os valores, onde quer que eles se encontrem.

A data do livro é outra difícil questão. Grande parte dos estudiosos situa-o após o Exílio, baseando-se quer na dúvida corajosa face às categorias do pensamento religioso tradicional, quer em certas influências aramaicas sobre o hebraico em que o livro está escrito, quer numa certa abertura ao mundo exterior a Israel, para contrariar o ambiente xenófobo que se vivia em Jeru­sa­lém, depois do Exílio (séc. V a.C.), testemunhado em Esdras e Neemias. Mas há quem pense que o livro poderia ser bastante mais antigo. Argu­men­tos: alguns aspec­tos linguísticos e o tema, que já tinha raízes em reali­zações muito anteriores nas literaturas do Médio Oriente Antigo.


LIVRO, TEMA E TEXTO

O livro de Job constitui, no contexto da Bíblia, um dado bem característico e original. Em primeiro lugar, porque enfrenta a questão da experiência religiosa pessoal como um objecto de reflexão e porque o faz com uma profundidade humana e um dramatismo dignos do melhor humanismo e da mais requintada arte literária; em segundo lugar, porque nem representa muito directamente a linguagem teológica mais carac­terística do Antigo Testamento.

O facto é que este livro se impôs como um dos mais elevados momentos literários da Bíblia; e, para a História da teologia, da filosofia e da cultura, até aos dias de hoje, ficou a ser um verda­deiro marco miliário da tomada de consciência dos dramas da experiência humana.

A importância que este livro assumiu na Bíblia e nas religiões bíblicas – Judaísmo e Cristianismo – veio-lhe também, em grande parte, do facto de nele se exprimir um dos temas máximos da cultura e da literatura huma­nist­as do Médio Oriente Antigo. É a questão do sofrimento e das suas reper­cussões, quer directamente na experiência de quem sofre, quer indirec­tamente na interacção que se produz entre as concepções morais e outras categorias religiosas fundamentais, tais como sofrimento e doença, pecado e castigo, santidade e felicidade. Enfim, é o problema de saber se existe alguma cor­re­lação justa ou lógica entre a maneira honesta como se vive e a maneira como a vida nos corre. Nos tempos bíblicos mais antigos, o Egipto, a Meso­potâmia e Canaã deixaram-nos exímios exemplos literários deste esforço de reflexão. É entre eles que o livro de Job encontra a sua base e se destaca como valor de primeira grandeza.

A maior parte do livro está escrita num hebraico de grande qualidade literária, que levanta, pelo seu estilo e vocabulário originais, algumas difi­cul­dades de tradução. É natural que os simples leitores de uma Bíblia o notem ao comparar várias traduções e verificar como estas assinalam difi­cul­dades de tradução de vários termos e passagens. Muito se tem estudado sobre ele e muito há ainda a estudar até se poder atingir a melhor com­preensão, tanto do vocabulário como das subtilezas de construção sintác­tica.


GÉNERO LITERÁRIO, ESTRUTURA E FORMAÇÃO

Do ponto de vista literário, o livro de Job apresenta-se dividido em duas secções princi­pais, que se notam bem pela forma, pelo estilo e pelas ideias. A secção inicial e a final, am­bas escritas em prosa, apresentam-nos a personagem central do livro, a fi­gura de Job. É o que, no esquema proposto mais adiante, se chama pró­logo e epílogo biográficos. No prólogo, Job aparece bem situado numa vida honesta e simultaneamente feliz; mas, depois, passa por experiências de des­graça que levantam a questão de saber se ele era, de facto, ou se conti­nuou ou não a ser honesto; no epílogo, a sua situação aparece, por fim, intei­ra­mente restaurada.

Esta evolução na acção dá importância à segunda secção do livro, que cons­titui a sua maior parte. Toda ela é uma discussão acesa sobre os pro­blemas suscitados pelo apa­rec­imento do sofrimento e de grandes desgraças na vida de um homem que não tinha culpa nem pecado. Esta parte em poe­sia é o essencial do livro, embora assente na situação de vida descrita pelo texto em prosa. O modelo literário é inspirado possivelmente nas discussões que se faziam nos ambientes culturais da época. Cada amigo apresenta um tipo de argumentação, e a discussão decorre, sem que Job, apesar do seu estado de sofrimento, se mos­tre desfalecido. Até para esclarecer as relações com Deus é utilizado o mesmo esquema. Numa intervenção final, Deus res­ponde a todas as discussões anteriores. O livro apresenta-se, assim, como um autêntico tri­bunal de consciência, para o qual o próprio Deus é citado e onde toma assento.

Muitos estudiosos pensam que estas duas secções podem não ser da mesma época nem ter sido escritas pelo mesmo autor. A primeira é mais popular; a segunda é claramente mais complexa e profunda. Além disso, a parte desig­nada como “Discurso de Eliú” (32-37) apresenta claros indícios de ter sido acres­centada posteriormente, quanto mais não seja porque ele não aparece na lista dos amigos que, segundo a narrativa inicial, foram ter com Job para o consolar. Estes aspectos da formação e da estrutura do livro são indícios de que a sua redacção pode ter tido uma história razoavelmente com­plexa.

DIVISÃO E CONTEÚDO

Propomos o esquema seguinte:

I. Prólogo biográfico: 1,1-2,13;
II. Primeiro debate: 3,1-14,22;
III. Segundo debate: 15,1-21,34;
IV. Terceiro debate: 22,1-27,23;
V. Elogio da sabedoria: 28,1-28;
VI. Monólogo de Job: 29,1-31,40;
VII. Discurso de Eliú: 32,1-37,24;
VIII. Intervenção de Deus: 38,1-42,6;
IX. Epílogo biográfico: 42,7-17.

Os números VI, VII e VIII podiam constituir uma roda dialogal final, mas dotada de um espírito razoavelmente diferente dos três primeiros debates. Por isso, o elogio da sabedoria (28) poderia estar a servir de separador e tran­­sição.


TEOLOGIA

O livro de Job é essencialmente uma obra de reflexão e medi­tação; é mesmo um espaço para levantar questões ainda hoje dramá­ticas. Chamar teologia ao seu pensamento pode até fazer crer que ali se apresenta uma catequese ortodoxa e tranquila. E não é o caso. No entanto, podemos servir-nos da palavra teologia, enquanto aqui é focado um con­junto de pro­ble­mas, cuja solução acaba por ir desembocar, em última análise, na con­cep­ção que se tem sobre Deus.

Por um lado, em Job rejeita-se um sistema de pensa­mento religioso: as posições moralistas e tradicionais da equivalência entre o sofrimento de uma pessoa e algum pecado por ela cometido. É o pensamento maiorita­ria­mente defendido pelos amigos de Job, com alguns matizes de dife­rença en­tre cada um deles. Por outro lado, o pensamento religioso do livro parece aproximar-se da nova consciência de Job, de onde emergem verdades já bastante evidentes para ele, mas que o deixam ainda muito inseguro e mesmo escan­da­lizado. Mas nem to­das as suas ideias são confirmadas, após a contemplação da sabedoria (28), o discurso de Eliú (32-37) e a in­t­ervenção final de Deus. Se as teses da religiosidade tradi­cio­nal e popu­lar sofrem uma forte contestação, tam­bém as novas sensações iniciais de Job chegam ao fim algo esba­ti­das. Job empreende uma reflexão ama­du­recida e profunda.

Em suma, neste livro recusa-se que a causalidade de todo o sofri­mento deva ser atribuída, seja ao ho­mem, seja a Deus. A ética e o ciclo da vida com os seus percursos natu­rais de sofrimento e morte são dois proces­sos coexis­tentes, mas autóno­mos. Pretender misturá-los é sim­plista e inútil. A justiça e a acção de Deus não se podem medir com as re­gras de equivalência que são nor­mais em justiça distributiva. Eis um dos mais marcantes contributos do livro de Job para esta importante ques­tão do humanismo e da experiência religiosa. A sua atitude básica pe­rante o sofrimento não é de moral lega­lista, nem é pietista, nem expia­cionista. É uma atitude de corajoso acolhi­mento do real; é contemplativa e verificadora; é um caminho de sabedoria. É, por conse­guinte, um espaço de transformação de si mesmo e dos factos. É ainda acolhimento do Deus invi­sível nas experiências humanas de paraíso e de deserto (19,25-26; 1 Cor 13,12).

Jb 1

I. PRÓLOGO BIOGRÁFICO (1-2)


Homem justo e temente a Deus 1Havia, na terra de Uce, um ho­mem chamado Job. Era um homem íntegro e recto, que temia a Deus e se afastava do mal. 2Tinha sete filhos e três filhas. 3Possuía sete mil ove­lhas, três mil camelos, qui­nhen­tas juntas de bois, quinhen­tas jumentas e uma grande quan­ti­dade de escravos. Este homem era o mais importante de to­dos os ho­mens do Oriente.

4Os seus filhos costuma­vam ir, cada dia, à casa uns dos outros, para fazerem ban­que­tes, e manda­vam con­­vidar as suas três irmãs para come­rem e beberem com eles. 5Quando acabava a série dos dias de festim, Job man­dava chamar os filhos para os puri­ficar e, levan­tando-se na ma­nhã seguinte, ofere­cia um holo­causto por cada um deles, porque, dizia ele: «Talvez os meus filhos tenham pe­cado, ofen­dendo a Deus no seu cora­ção.» Assim fazia Job todas as vezes.


As primeiras provações – 6Um dia em que os filhos de Deus se apresentavam diante do Senhor, o acusador, Satan, foi também junto com eles. 7O Senhor disse-lhe: «Don­de vens tu?» Satan respondeu: «Ve­nho de dar uma volta ao mundo e per­­corrê-lo todo.» 8O Senhor disse-lhe: «Reparaste no meu servo Job? Não há ninguém como ele na terra: ho­mem íntegro, recto, que teme a Deus e se afasta do mal.» 9Satan respon­deu ao Senhor: «Porventura Job te­me a Deus desinteressadamente? 10Não ro­deaste Tu com uma cerca protec­tora a sua pessoa, a sua casa e todos os seus bens? Abençoaste o trabalho das suas mãos, e os seus rebanhos cobrem toda a região. 11Mas se es­ten­deres a tua mão e tocares nos seus bens, verás que te amaldi­çoa­rá, mesmo na tua frente.» 12Então, o Senhor disse a Sa­tan: «Pois bem, tudo o que ele possui deixo-o em teu poder, mas não esten­das a tua mão contra a sua pessoa.» E Satan saiu da presença do Senhor.

13Ora, um dia em que os filhos e filhas de Job estavam à mesa e be­biam vinho na casa do irmão mais velho, 14um mensageiro foi dizer a Job: «Os bois lavravam e as jumen­tas pastavam perto deles. 15De re­pente, apareceram os sabeus, rou­ba­­­ram tudo e passaram os servos a fio de espada. Só escapei eu para te tra­zer a notícia.» 16Estava ainda este a falar, quando chegou outro e disse: «Um fogo terrível caiu do céu; quei­mou e reduziu a cinzas ovelhas e pas­­tores. Só escapei eu para te tra­zer a notícia.»

17Falava ainda este, e eis que chegou outro e disse: «Os cal­deus, divididos em três grupos, lan­ça­ram-se sobre os camelos e leva­ram-nos, depois de terem passado os ser­vos a fio de espada. Só eu con­segui esca­par, para te trazer a notí­cia.»

18Ainda este não acabara de falar, e eis que en­trou outro e disse: «Os teus filhos e as tuas filhas esta­vam a comer e a beber vinho na casa do irmão mais velho 19quando, de re­pente, um fura­cão se levantou do outro lado do deserto e abalou os quatro cantos da casa, que desabou sobre os jovens. Morreram todos. Só eu consegui esca­par, para te trazer a notícia.»


Fidelidade de Job – 20Então, Job levantou-se, rasgou as vestes e ra­pou a cabeça. Depois, prostrado por terra em adoração, 21disse:

«Saí nu do ventre da minha mãe
e nu voltarei para lá.
O Senhor mo deu, o Senhor mo tirou;
bendito seja o nome do Senhor!»

22Em tudo isto, Job não cometeu pecado, nem proferiu contra Deus nenhuma insensatez.

Jb 2

Novas provações – 1E aconte­ceu que um dia em que os filhos de Deus se foram apresentar diante do Senhor, Satan apareceu também junto com eles na presença do Se­nhor. 2O Senhor perguntou-lhe: «Donde vens tu?» Satan respondeu: «Venho de dar a volta ao mundo e percorrê-lo todo.» 3O Senhor disse-lhe: «Reparaste no meu servo Job? Não há ninguém como ele na terra: homem íntegro, recto, que teme a Deus e se afasta do mal; ele perse­vera na sua integridade, apesar de me teres incitado contra ele, para o aniquilar sem motivo.» 4Satan res­pondeu: «Pele por pele! O homem dará tudo o que tem para salvar a própria vida. 5Mas experimenta es­ten­der a tua mão, toca nos seus os­sos e na sua carne e verás como ele te amaldiçoará, mesmo na tua fren­te.» 6O Senhor disse a Satan: «Pois bem, aí tens Job ao alcance da tua mão; mas poupa-lhe a vida.»

7Satan retirou-se da presença do Senhor e atingiu Job com uma lepra maligna, desde a planta dos pés até ao alto da cabeça. 8E Job pegou num caco de telha para se ras­par com ele e ficava sentado sobre a cinza.

9A sua mu­lher disse-lhe: «Per­sis­tes ainda na tua integridade? Amal­­diçoa a Deus e morre de uma vez!» 10Respondeu-lhe Job: «Falas como uma insen­sata. Se recebemos os bens da mão de Deus, não acei­tare­mos também os males?» Com tudo isto, Job não pecou pelas suas palavras.


Os três amigos de Job – 11Três amigos de Job – Elifaz de Teman, Bil­dad de Chua e Sofar de Naamá – ao saberem das desgraças que lhe tinham sucedido, partiram cada um da sua terra e combinaram juntar-se, a fim de compartilharem a sua dor e o consolarem. 12E quando de longe le­vantaram os olhos, não o reco­nhe­ceram; puseram-se então a chorar, rasgaram as suas vestes e es­palha­ram pó sobre as suas cabe­ças. 13Fi­ca­ram sentados no chão, ao lado dele, sete dias e sete noites, sem lhe dizer palavra, pois viram que a sua dor era demasiado grande.

Jb 3

II. PRIMEIRO DEBATE (3,1-14,22)


Job: a infelicidade de ter nas­cido

1Por fim, Job abriu a boca e amaldiçoou o dia do seu nasci­mento.

2Tomou a palavra e disse:

3«Desapareça o dia em que nasci e a noite em que foi dito:

‘Foi con­cebido um varão!’

4Converta-se esse dia em trevas!

Deus, lá do alto, não se preocupe com ele

nem a luz o venha iluminar.

5Apoderem-se dele as trevas e a escuridão.

Que as nuvens o envolvam

e os eclipses o apavorem!

6Que a sombra domine essa noite;

não se mencione entre os dias do ano

nem se conte entre os meses!

7Seja estéril essa noite

e não se ouçam nela brados de alegria.

8Amaldiçoem-na os que abomi­nam o dia

e estão prontos a despertar Levia­tan!

9Escureçam as estrelas da sua ma­drugada;

que em vão espere a luz do dia,

nem possa ver abrirem-se as pál­pebras da aurora,

10já que não me fechou a saída do ventre

nem afastou a miséria dos meus olhos!

11Porque não morri no seio da mi­nha mãe

ou não pereci ao sair das suas entranhas?

12Porque encontrei joelhos que me acolheram

e seios que me amamentaram?

13Estaria agora deitado em paz,

dormiria e teria repouso

14com os reis e os grandes da terra,

que constroem mausoléus para si;

15com os príncipes que amontoam ouro

e enchem de dinheiro as suas ca­sas.

16Ou como um aborto escondido,

eu não teria existido,

como um feto que não viu a luz do dia.

17Ali, os maus cessam as suas per­versidades,

ali, repousam os que esgotaram as suas forças.

18Ali, estão tranquilos os cativos,

que já não ouvem a voz do guarda.

19Ali, estão juntos os pequenos e os grandes,

e o escravo fica livre do seu se­nhor.

20Por que razão foi dada luz ao infeliz,

e vida àqueles para quem só há amargura?

21Esses esperam a morte que não vem

e a procuram mais do que um tesouro;

22esses saltariam de júbilo

e se alegrariam por chegar ao sepulcro.

23Porque vive um homem cujo ca­minho foi barrado

e a quem Deus cerca por todos os lados?

24Em lugar de pão, engulo os meus soluços,

e os meus gemidos derramam-se como a água.

25Todos os meus temores caíram sobre mim

e aquilo que eu temia veio atin­gir-me.

26Não tenho paz nem descanso,

os tormentos impedem-me o re­pouso.»

Jb 4

Elifaz: Deus corrige

1Elifaz de Teman tomou a pa­la­vra e disse:

2«Se alguém te falasse, irias su­por­tar?

Mas quem poderá conter as pala­vras?

3Tu, antes, exortaste a muita gente,

fortaleceste muitas mãos débeis.

4As tuas palavras eram o apoio dos vacilantes

e fortalecias os joelhos trémulos.

5Mas, agora que te toca a ti, des­fa­leces?

Agora que és atingido, pertur­bas-te?

6Não é a tua piedade a tua con­fiança,

e a integridade da tua vida, a tua segurança?

7Lembra-te disto: qual o ino­cen­te que já pereceu?

Ou quando foram exterminados os justos?

8Sempre vi que os que praticam a iniquidade

e semeiam a maldade colhem os seus frutos.

9A um sopro de Deus, perecem,

destruídos pelo furor da sua in­dignação.

10Ruge o leão e o seu rugido é aba­fado;

os dentes dos leõezinhos são que­brados.

11O leão morreu porque não tinha presa,

e os filhotes da leoa dispersaram-se.

12Escutei em segredo uma pala­vra,

e o meu ouvido percebeu o seu murmúrio.

13Na confusão das visões da noite,

quando os homens dormem num sono profundo,

14o medo e o terror apoderaram-se de mim

e sacudiram todos os meus ossos;

15um sopro perpassou pelo meu rosto

e arrepiaram-se-me todos os pêlos do corpo!

16Estava alguém diante de mim,

uma figura silenciosa cujo rosto não reconheci;

mas ouvi uma voz que dizia:

17‘Pode um homem ser justo na pre­sença de Deus,

ou um mortal ser puro diante do seu Criador?’

18Ele não confia nem nos seus pró­prios servos,

e até mesmo nos seus anjos en­contra defeitos;

19quanto mais nos que habitam mo­radas de barro

e cujo suporte é o pó da terra!

20São esmagados como um verme,

e aniquilados da noite para a ma­nhã.

Desaparecem para sempre sem deixar memória.

21Eis que já foi arrancada a corda da sua tenda;

morrem sem terem conhecido a sabedoria.»

Jb 5

A sorte do insensato

1«Chama para ver se te respon­dem;

a qual dos santos te dirigirás?

2A ira mata o insensato,

e a inveja mata o imbecil.

3Vi o insensato lançar raízes,

mas a sua morada foi logo amal­diçoada.

4Os seus filhos são privados de qual­quer socorro,

são pisados à porta sem que nin­guém os defenda.

5Os famintos devoram as suas co­lheitas

e até entre os espinhos as reco­lhem;

os ambiciosos absorvem-lhe as ri­­quezas.

6Pois a maldade não nasce do chão,

a iniquidade não brota da terra.

7É do homem que vem a iniqui­dade

como do fogo saem as chispas a voar.

8Por isso, voltar-me-ei para Deus

e nas suas mãos porei a minha causa.

9Ele fez grandes e insondáveis coi­sas,

maravilhas incalculáveis;

10Ele derrama a chuva sobre a terra

e envia as águas sobre os cam­pos;

11ajuda a levantar os humilhados

e dá segurança aos que estão aflitos;

12desfaz os projectos dos maus,

e as mãos deles não executam os seus planos;

13apanha os sábios nas suas pró­prias redes

e frustra os desígnios dos astu­tos;

14em pleno dia encontram as tre­vas

e, como se fosse de noite,

andam às apalpadelas ao meio-dia.

15Protege o fraco da espada afia­da da língua deles

e o pobre da mão do poderoso.

16O infeliz recobra a sua esperança,

e é fechada a boca dos malvados.

17Feliz o homem a quem Deus cor­­rige!

Não desprezes a lição do Todo-Poderoso.

18Ele é quem faz a ferida e quem a cura;

Ele fere e cura com as suas mãos.

19Seis vezes te salvará da angús­tia,

e, na sétima, o mal não te atin­girá.

20Em tempo de fome, preservar-te-á da morte

e, em tempo de guerra, dos gol­pes da espada.

21Preservar-te-á do açoite da lín­gua,

e não temerás quando vier a ruína.

22Rir-te-ás da devastação e da fome,

e não temerás os animais fero­zes.

23Farás aliança com as pedras do campo,

e os animais selvagens viverão em paz contigo.

24Dentro da tua tenda conhecerás a paz,

e visitarás os teus apriscos, onde nada falta.

25Verás multiplicar-se a tua des­cen­dência

e os teus rebentos crescer como a erva dos campos.

26Descerás, amadurecido, ao se­pul­­cro,

como um feixe de trigo maduro, a seu tempo.

27Foi isto o que observámos e con­firmámos.

Presta atenção e tira proveito.»

Jb 6

Job: queixas contra os ami­gos

1Então Job tomou a palavra e disse:

2«Ah! Se eu pudesse pesar a mi­nha aflição

e pôr na balança o meu infor­tú­nio!

3Este pesaria mais do que a areia dos mares!

Por isso, as minhas palavras se descontrolam;

4pois as setas do Todo-Poderoso vêm contra mim

e o meu espírito absorve o ve­neno delas.

O terror do Senhor assedia-me.

5Porventura zurra o asno montês diante da erva?

Ou muge o touro junto da sua for­ragem?

6Come-se um manjar insípido, sem sal?

Ou que gosto pode haver numa clara de ovo?

7Por isso a minha alma recusa estar tranquila;

está perturbada pela enfermi­dade do meu corpo.

8Quem me dera se realizasse a mi­nha petição

e que Deus me concedesse o que espero!

9Prouvera que Deus me esma­gasse,

deixasse cair a sua mão e me des­truísse.

10Isso seria uma consolação para mim

e exultaria no meio dos meus tor­mentos,

porque não reneguei as palavras do Santo.

11Quais são as minhas forças para resistir?

Que objectivo me prolongaria o desejo de viver?

12Será que eu tenho a fortaleza das pedras,

e será de bronze a minha carne?

13Não encontro nenhum socorro,

e o sucesso está fora do meu al­cance.

14O desalentado precisa da com­preensão de um amigo,

se não, abandona o temor do Po­deroso.

15Os meus irmãos atraiçoaram-me como uma torrente,

como as águas das torrentes desa­pareceram,

16tornando-se turvas pelo degelo

e arrastando consigo a neve.

17No tempo da seca, elas desapa­re­cem,

ao vir o calor, extinguem-se no seu leito.

18As caravanas desviam-se da sua rota,

avançam no deserto e desapare­cem;

19as caravanas de Teman esprei­ta­vam

e os mercadores de Sabá espera­vam por elas;

20confundidos na sua espe­rança,

chegaram ao lugar e ficaram desi­­ludidos.

21Assim fostes vós, nesta hora, para mim.

À vista do meu infortúnio atemo­rizais-vos.

22Porventura eu vos disse: ‘Trazei-me

e dai-me dos vossos bens,

23livrai-me do poder do inimigo,

e resgatai-me da mão dos opres­sores?

24Ensinai-me e eu escutarei em si­lêncio,

mostrai-me em que é que eu errei.’

25Como são eficazes as palavras ver­dadeiras!

Mas em que podereis vós censu­rar-me?

26Pretendeis censurar-me por pala­­vras ditas?

Palavras desesperadas leva-as o vento.

27Seríeis capazes de leiloar um órfão,

de vender o vosso amigo!

28Agora, peço-vos, olhai para mim;

face a face, assim, não poderei mentir.

29Vinde, pois, não sejais injustos.

Vinde, estou inocente em tudo isto!

Jb 7

Dificuldades na vida do ho­mem

1«A vida do homem sobre a terra, não é ela uma luta?

Não são os seus dias como os de um assalariado?

2Como um escravo suspira pela sombra,

e o jornaleiro espera o seu sa­lário,

3assim eu tive por quinhão meses de sofrimento,

e couberam-me em sorte noites cheias de dor.

4Se me deito, digo: ‘Quando che­gará o dia?’

Se me levanto: ‘Quando virá a tarde?’

E encho-me de angústia até che­gar a noite.

5A minha carne cobre-se de podri­­dão e imundície,

a minha pele está gretada e su­pura.

6Os meus dias passam mais rá­pido que a lançadeira

e desaparecem sem deixar espe­rança.

7Lembra-te de que a minha vida é um sopro,

e os meus olhos não voltarão a ver a felicidade.

8Os olhos de quem me via não mais me verão,

os teus olhos procurar-me-ão e eu já não existirei.

9Como a nuvem que passa e desa­parece,

assim o que desce ao sepulcro não se erguerá.

10Não voltará outra vez à sua casa;

o seu lar não mais o reconhecerá.

11Por isso, não reprimirei a mi­nha língua,

falarei da angústia do meu espí­rito,

queixar-me-ei da amargura da mi­nha alma:

12acaso sou eu o mar ou um mons­tro marinho,

para que te ponhas de guarda con­tra mim?

13Se eu disser: ‘Estarei confor­tado no meu leito,

e a minha cama aliviará o meu sofrimento’,

14então, Tu enches-me de sonhos aterradores,

e de visões horrorosas.

15Preferia morrer estrangulado;

antes a morte que os meus tor­mentos!

16Sucumbo, não viverei mais;

deixai-me, que os meus dias são apenas um sopro.

17Que é o homem, para lhe dares importância

e fixares nele a tua atenção,

18para que o observes todas as ma­nhãs

e o proves a cada instante?

19Quando afastarás de mim o teu olhar,

e deixarás que eu engula a mi­nha saliva?

20Que pecado cometi contra ti,

ó juiz dos homens?

Porque me tomas por teu alvo,

quando nem a mim mesmo me posso suportar?

21Porque não retiras o meu pe­cado

e não apagas a minha culpa?

Eis que vou dormir no pó;

procurar-me-ás e já não existi­rei.»

30Haverá porventura falsidade na minha língua?

O meu paladar não saberá dis­cer­nir o que não presta?»

 

Jb 8

Bildad: as faltas e o castigo

1Bildad de Chua tomou a pala­vra e disse:

2«Até quando dirás semelhantes coi­sas?

As palavras da tua boca são como um furacão.

3Acaso tornará Deus torto o que é direito,

e o Todo-Poderoso subverterá a justiça?

4Se os teus filhos pecaram contra Ele,

Ele entregou-os ao poder da sua iniquidade.

5Mas, se recorreres a Deus

e implorares ao Todo-Poderoso,

6se fores puro e recto,

desde agora Ele velará sobre ti,

e restabelecerá a tua morada com justiça.

7A tua condição anterior pare­cerá modesta

diante da grandeza da tua condi­ção futura.

8Interroga as gerações passadas

e considera a experiência dos an­te­­­­­passados.

9Pois somos de ontem e nada sa­bemos;

a nossa vida sobre a terra passa como uma sombra;

10eles instruir-te-ão e falarão con­tigo,

e tirarão sentenças do seu cora­ção.

11Acaso pode brotar o papiro fora do pântano,

e o junco crescer sem água?

12Ainda verde, sem que a mão o toque,

ele seca antes das outras ervas.

13Esta é a sorte dos que esque­cem a Deus.

A esperança do ímpio desvanecer-se-á.

14A sua esperança ser-lhe-á arran­cada;

a sua segurança é uma teia de aranha.

15Ele apoia-se numa casa que se desmorona,

numa morada que não tem con­sistência.

16Parece uma planta viçosa, ao sol,

que estende os seus ramos no jar­dim.

17As suas raízes multiplicam-se por entre as pedras,

e vive no meio de penhascos.

18Mas, se é arrancado do seu lugar,

este renegá-lo-á dizendo: ‘Nunca te vi.’

19Esta é a sorte que o espera,

e outros rebentos germinarão do solo.

20Porém, Deus não abandona o ho­mem íntegro,

nem dá a mão aos malvados.

21Ele encherá a tua boca de sor­risos,

e de júbilo os teus lábios.

22Os teus inimigos ficarão cober­tos de vergonha,

e a tenda dos maus não subsis­tirá.»